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As Borboletas

A menina tinha 16 anos, muitos sonhos e borboletas que enfeitavam o jardim de suas esperanças. Queria ser professora de Língua Portuguesa, adorava literatura, traço nada comum para a sua idade, e, apesar de algumas dificuldades por sua formação deficitária, se superava a cada dia.

 

Era daquelas que auxiliam o professor a organizar os materiais e apagar a lousa, porém, ao contrário do que o leitor possa estar pensando, não era conhecida como “CDF”, nem se sentava à frente, não era feia e nada de óculos!

 

Ela estava na 3ª série do Ensino Médio quando veio a pandemia e tudo o que era doce se acabou. As paredes de sua casa não representavam para ela o suporte de que precisava para os estudos, pelo contrário, ao invés de sustento eram opressão. Com os quatro irmãos mais novos para cuidar, uma vez que perdera a mãe muito cedo, tinha seus afazeres de doméstica.

 

– Se estivesse na escola, ficava a casa como desse e ninguém falaria nada! Então organiza seus horários de estudo e tenta cumprir, conforme a agenda da escola. – dizia diariamente a professora a quem ela chamava de Fada Madrinha.

 

A Professora Fada tinha muitas ideias! Todos os dias era uma criação: roteiros de estudos bem interessantes! A menina via e gostava. Só que eram várias videoaulas para pouca internet!

 

Quando ia à casa da avó ou da vizinha, aproveitava o wifi para fazer as atividades, só que elas pareciam se multiplicar. Tarefa na escola é diária. Nove aulas por dia para dar conta em algumas horas de wifi por semana. Coisa impossível de dar tão certo!

 

O tempo foi passando e três lições por dia pareciam trezentas, a faxina na casa era sufocante e quanta roupa para lavar!

 

Quando a fada madrinha inventou de fazerem uma chamada de vídeo para gravarem leituras e discussões sobre os poemas de Carlos Drummond, era um tal de correr na vizinha e a gravação falhava de novo. “No meio do caminho tinha uma pedra..." e um tal de empresta outro aparelho, troca, pede aqui e ali... “Quando nasci um anjo torto...

 

"– Ai, que sufoco! – dizia a fada - Desculpe! O aplicativo falhou! Não gravou o som!

 

Depois:

 

–Ah, não! Deu errado novamente, celular travou! Não é possível!

 

Mas entre um sufoco e outro, a gravação saiu e o vídeo espalhou poesia pelo ar!

 

O encontro entre a menina e sua fada era realmente encantado. Foi assim que a madrinha teve mais uma de suas quimeras malucas e felizes. Em uma das conversas possíveis entre as duas, decidiu dar-lhe um celular. É! Isso mesmo! Um celular com chip, internet pré-paga e todo o suporte para que pudessem ela e até seus irmãos fazerem as atividades na plataforma da escola.

 

Comprou o aparelho pela internet, esperou três dias para não ter risco do vírus se propagar e nem mais um minuto!

 

Saiu, pegou seu carro na garagem e, empolgada com a possibilidade de renovar a vida de sua pupila, sonhou o sonho derradeiro. O aparelho e uma sacola de livros. Colocou tudo no carro e avisou a garota.

 

A professora queria ter os olhos para o prosaico da vida, para a finitude, as impossibilidades. Desistir daquilo que não lhe era aparentemente da alçada, correr para bem longe do peso e, assim, sentir-se mais leve, quem sabe. Mas não sabia o caminho. Fez a ligação e falava pelo viva-voz no carro:–

 

Querida, tive uma ideia: Estou levando um celular e vários livros para você e seus irmãos aproveitarem também. Passa seu endereço. Nossa! Esqueci meus óculos!

 

– Mas meu pai não está, teve que sair, ele está procurando emprego... Ele é um pouco bravo, entende? Não sei o que ele vai achar...

 

Só que a Fada Madrinha não desistia nunca, e, ao invés de frear no cruzamento, acelerou, sem nem mesmo saber o endereço da menina, sem nem mesmo enxergar o caminho. Onde estão os óculos? “Ah, tenho apenas duas mãos e todo o sentimento do mundo!

 

”As borboletas ainda enfeitavam o jardim quando o carro capotou e a menina, que ouviu o barulho do acidente, teve certeza de seu destino.

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