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O S.U.S.T.O.jpg

O S.U.S.to

Jair acorda com o coração disparado, está suado e com os olhos arregalados de medo. No escuro, chama a mulher que dorme pesadamente.

 

–Rogéria, acorda! Tive um pesadelo horrível e estou passando mal.

 

A mulher abre os olhos, se esforça para abri-los, senta na cama com extrema má vontade e, com os punhos cerrados, o rosto crestado de ódio, despeja sua raiva. Detestava ser acordada e, além de tudo... Rogéria era o nome da ex-esposa de seu marido!

 

– Desgraçado, infeliz... Pulha, eu não sou Rogéria, sou Michele, lembra de mim? Casei com você há anos! Então, seu sem vergonha, acorda com medinho e chama pela ex? Seu rato! Bateu saudade?

 

A menção às palavras “medinho” e "rato” foi feita de propósito para provocar Jair. Ele era capitão reformado do exército, sujeito temido, brabo, sem meias palavras e, mencioná-lo com medinho, e como um rato, certamente, o deixaria ofendido. E deixou mesmo..

 

.– Que medinho? Tá me estranhando mulher? – Fala isto num tom mais grave para mostrar a masculinidade. – Só acordei com o coração palpitando forte e nunca falei Rogéria, eu disse claramente Michele, táokay?

 

Como não quisesse alongar a discussão, calou-se, até porque sabia que jamais o convenceria de seu erro e então... melhor contemporizar:

 

– Me fale sobre este pesadelo. O que foi que você sonhou?

 

O Capitão olhou a mulher e tentou relatar, tomando o cuidado de chamá-la pelo nome correto, afinal, era a atual esposa:

 

– Olha, Michele, eu sonhei que estava com esta gripezinha. A "qüestão" é que eu era pobre, pô. Aí tive que ir a uma unidade do S.U.S. Fui de ônibus, de ônibus, imagina!? E com uma máscara feita de lenço! Cheguei lá e vi aquele ambiente sujo, cheio de gente remelenta, as paredes cheias de umidade de goteira e um banco de espera de madeira, duro e frio. Foi lá que fiquei por duas horas e meia. Então, quando chegou minha vez, a atendente me pediu uns doze documentos diferentes enquanto eu ficava cada vez mais sem ar. Aí, quando ela falou que nem médico tinha naquela pocilga, pô, eu fiquei totalmente sem ar!

 

– E aí ficou gritando Rogéria! – voltou a provocar Michele.

 

Como sabe que está errado, o Capitão tenta não se indignar. É então que Michele, inadvertidamente, põe a mão na perna de Jair, sente a umidade morna e se desfaz em gargalhadas:

 

– Capitão Jair, você se mijou de medo?! – fala a mulher de modo jocoso. E Jair se sente em fúria, mas ao mesmo tempo, o menor dos capitães do exército brasileiro. Diz, baixinho:

 

– E daí? Tive medo de morrer sem ar, táokay? E no tocante à morte, ela vem para todo mundo, mas todo mundo pode ter medo da morte.

 

Se viu mijado, humilhado e triste, fora que Michele o cobraria para sempre por chamá-la pelo nome da ex! Mas, a melhor defesa é o ataque, como dizia sua mãe. Então, se pôs em pé e quase gritando informou:

 

– Vou tomar um banho! – baixou o tom de voz e completou – faz um chá pra mim?

 

– Não sou a Ro-gé-ria, mas vou. – silaba o nome “dela” para mostrar que não esqueceria rápido. E se vai.

 

Enquanto isso, Jair se levanta e vai tomar banho.

 

Volta ainda ressabiado, de moletom verde-oliva.

 

– Vou dar uma volta para esfriar a cabeça, táokay?

 

Ela odiava aquele “Táokay”. Jair pegou esta mania com uns militares americanos que aqui estiveram quando ainda era cabo, e isso já faz muito tempo, mas ele não perde aquilo.

 

– Se vai sair de casa, não se esqueça da máscara – adverte ela.

 

– Que máscara o quê? Tá achando que eu tenho medo dessa gripezinha de merda?

 

Ela responde com o olhar esguio e vai levar a chávena vazia de volta para a cozinha. De lá fala com voz materna, mas firme:

 

– Põe a cueca mijada no cesto e coloque a máscara! – diz “coloque a máscara” de forma mais dura, como uma prescrição.

 

Jair baixa a cabeça, põe a máscara e vai saindo sem falar mais nada.

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