
Existir
Márcia Plana
Existir...
1,2,3 testando
número do telefone?
e-mail?
Eu não sei se existo. Tenho nome, porque a mim me foi dado, um nome de nascida, mas não tenho registro, nenhum pedaço de papel que comprove que sou Aparecida. Não tenho um número selado ao meu corpo, quero lembrar que não sou gado, nem vaca. Apesar de olharem meus contornos. Não fui batizada, mas resisti até a data presente. Nunca vi o cenário de um hospital. Minha mãe me teve numa rua fria que, provavelmente, não tinha nome, o mesmo se sucedeu aos meus meninos. Uma mulher fez o parto: a parteira. Esta também não tinha nome, assim como o leiteiro da esquina, o homem do ovo, a mulher da cândida, a professora, o médico, a secretária. Todos ganham apelidos. Não são o que são, mas o que fazem. E o que isto adianta?
Como do meu suor ou pelo menos comia, mas no momento estou sem emprego. O vírus subtrai a respiração humana e, na surdina, tira o alimento da boca de milhares de pessoas. Eu sou uma delas. Meu trabalho... ficou para trás, porque não posso fazer as unhas das minhas clientes. Acho que a palavra possessiva se perdeu no tempo: minhas clientes, meu emprego, meu nome, meu número. Sim, temos um número. Nunca sei ao certo, o telefone, a casa, mesmo que alugada. A calça que eu visto, o tempo apagou, mas já teve um número.
A vizinha ouviu, certamente, pelo rádio que o governo destinou aos trabalhadores informais, autônomos e microempreendedores uma proteção emergencial para o enfrentamento da crise promovida pela covid-19. Contou-me como se conta um conto de fada. Eu, como gata borralheira que sempre fui, sorri pela informação, que caía aos toques da varinha de condão, e agradeci a solidariedade. Entro no barraco, pego um copo de água e tento enxergar no reflexo a figura de quem sou - mãe solteira, desempregada, com as crianças ainda enrabichadas na bainha da saia. Era sonho... Não poderia ser verdade: 600 reais, neste momento de fragilidade. Seria como ganhar na loteria e tentar colocar o pão sem manteiga, nem leite ao estômago dos meninos. Passo a noite acordada, velando meus pensamentos. Seria eu digna, de um número tão grande, sem correr suor do meu rosto? Ou o valor valeria por todos os suores não pagos? 600 reais! Sinto-me gente e vou deitar ao lado dos meninos.
Dia seguinte, levanto antes do sol bater à porta, largo as crianças dormindo um sono profundo, caminho alguns passos largos em direção ao banco, conforme a vizinha me orientou. Sim, estava de máscara. Rasguei a manga da blusa – a criatividade não falta às mãos dos brasileiros – transformei o tecido esgarçado em minha proteção. Esta será a dos meus filhos: a comida na mesa. Fico o dia inteiro na fila, quando chego na boca do caixa, uma moça de cabelos longos e presos, me pede:
– CPF, por favor!– Esta não pergunta meu nome, apesar de toda a educação.
–Não tenho, faz tempo que estou tentando tirar o documento, mas pedem as carteiras de registro de meus pais. Estas também não as tenho. Nem sei por onde eles andam. A moça olha para mim indignada e chama o próximo, como se eu não estivesse ali, esperando ainda o dinheiro.
"Sinto muito!" é o que escuto pela a voz abafada por causa da máscara, que não apenas a protege contra o vírus, mas esconde a vergonha de não poder me pagar aquilo que é meu por direito, porque não possuo um número. Esqueci. Talvez precisasse lembrar que a posse não me pertence: meu direito, meu dinheiro. Não tenho nada, mas resta o que se pode chamar de dignidade. Olho para frente, espero a funcionária atender o outro cliente, peço licença, vou em direção a caixa novamente.
– Moça, preciso requerer o direito, sou cidadã.
–Sinto muito, mas se não tem CPF não temos como ajudá-la... o próximo!
Olho para enormidade da fila: algumas pessoas com crianças no colo, outras, provavelmente, deixaram as crianças em casa. Outras, como eu, ficariam na fila sem receber o dinheiro, porque nos foi negado o direito à cidadania. Não é de hoje! Mas é neste momento difícil, que sentimos a dor dos múltiplos vírus, que corroem a vida, nos que vivem refugiados de si: o direito de comer. Eu não consegui receber o auxílio do governo, não porque tenha bonanças, pelo contrário, tenho duas crianças pequenas. Fazer unhas ainda não posso. Ah! Não se preocupe! Meus meninos comeram ontem, os vizinhos e a comunidade ajudam bastante, mas preciso do gás... remédios, só conheço as ervas. Sim, eu ainda espero ver meu nome grafado num pedaço de papel e nele, o carimbo de um número que possa ser eu.

Arte: Cecília Camargo