
Branca escuridão
Marcos Moreira
"A vida é curta e deve ser vivida intensamente!" O mote do hedonista: uma existência regida única e exclusivamente pela busca do prazer. Sem pensar nas consequências. Sem apegar-se às regras. Sem restringir-se.
Eis o meu estilo de vida.
E na ânsia por satisfazer meus desejos mais primitivos, ignorei a educação que me foi dada, abri mão de todo e qualquer apego às pessoas ao meu redor e usei todos os recursos financeiros ao meu dispor com o único propósito de saciar-me. Os melhores carros, as mais belas mulheres, uma vida de luxo, excessos e aparência. Até eu consumir tudo o que um nascimento privilegiado havia me legado.
Após exaurir todos meus recursos financeiros, vi-me sozinho no mundo, falido e fadado ao esquecimento. Ou estaria fadado, não fosse a Pandemia.
Restrições sanitárias, isolamento social, histeria coletiva.
Oportunidade.
Oportunidade de usar meu nome e contatos para aliar minha ânsia por prazer às minhas necessidades financeiras.
Sem medo de contaminação, tomando o vírus por mera forma de me aproveitar do desespero alheio, passei a promover festas clandestinas em lugares isolados. Música, comida, bebida, drogas - noites de luz colorida e mente entorpecida. Festas repletas de pessoas cansadas de serem tolhidas por decretos governamentais. Pessoas com dinheiro e disposição suficientes para quebrar as regras. Mas, assim como a oportunidade de me aproveitar do isolamento surgiu, ela se foi: em um fim-de-semana, uma de minhas festas clandestinas fora interrompida com a chegada da polícia.
Escapei por pouco, porém o prejuízo foi imenso. Com centenas de pessoas detidas e multadas, com as drogas, bebidas e comidas confiscadas, e com o dono do local indiciado judicialmente, achei por bem sumir por um tempo. Se a investigação não chegasse a mim, logo estabeleceria novas conexões, promoveria outras festas em novos lugares, com novos formatos, mais seguros. Contudo, a contaminação que havia aberto uma porta de possibilidades de lucro e prazer, resolveu me assolar da forma mais cruel.
A tosse seca, a febre, o vômito, a diarreia. E todo o glamour que minha condição social me garantiu a vida toda, não foi capaz de me assegurar um atendimento diferenciado no meu momento mais desesperador!
Eu, que havia nascido em berço de ouro, agora, sem dinheiro, sem influência, jazo no corredor de um hospital do SUS.
Tal situação é inadmissível! Fui educado nas melhores escolas da Europa. Meu pai e mãe, embora nunca me dessem amor, me deram um nome a zelar e uma fortuna que, mesmo não existindo mais, tornou-me superior a estas pessoas tacanhas ao meu redor. Eu tenho que sair daqui, garantir o atendimento que mereço.
Levanto-me, mas não tenho forças. Sinto rostos encarando-me com escarnio, mas não me rendo aos seus julgamentos. Sigo, orgulhoso de quem sou, rumo à saída. Repentinamente, porém, os rostos a me encarar dão lugar às luzes no teto que teimam em ofuscar minha vista, enquanto permaneço caído sobre o chão gelado.
Pisco. E, no instante seguinte, estou sem minhas roupas, deitado numa cama de enfermaria. Entretanto, dou-me conta que não é o instante seguinte. As janelas denunciam que já é noite. Preciso sair daqui.
Levanto-me novamente. Tal qual um fantoche, vejo-me preso a uma corda que restringe meus movimentos. Noto, porém, que não é uma corda e sim um tubo – um tubo plástico, um tubo de soro.
Sempre ingeri pela boca, narinas e veias, coisas que me proporcionavam prazer. É triste me ver assim, mantido por uma solução de água e sal injetada em minhas artérias...
Sinto o vento frio batendo em minhas nádegas, gelando minhas costas ao penetrar pela fresta da camisola branca que visto. Apoio o pé descalço no piso gelado, mas falta-me ar, falta-me chão, falta-me consciência.
Abro o olho novamente. Tento me erguer. Não teria forças, mas mesmo que as tivesse, não conseguiria me levantar. Estou preso, preso à cama. Amarraram-me, os canalhas!
Aprisionaram-me a esse leito de hospital a esse quarto a essa tosse que se seguiu aos meus gritos exigindo que me soltassem que me tirassem daqui que me livrassem desse vírus imaginário dessa tosse imaginária que me devolvessem o ar que se recusa a entrar sozinho em meus pulmões...
Então, o quarto se enche de torturadores, segurando-me, apertando-me, espetando-me com suas agulhas, despejando tranquilizante em minhas veias, roubando de mim o direito de me indignar, de permanecer acordado.
A cada retomada de consciência, um novo lugar. A cada novo lugar, uma nova dor. A cada nova dor, um novo dia, semana, ou mês, quem sabe? O tempo perde seu significado, por vezes pulando, por vezes arrastando-se, com o único propósito de proporcionar a cada momento em que permaneço acordado, uma chance de me torturarem. E essa sequência de fatos continua até que chegue ao estágio final. Até encontrar-me enclausurado num quarto de UTI.
"A vida é curta e deve ser vivida intensamente." Eis a lei que regeu minhas ações, desde a morte de meus pais. As pessoas dizem que todos os atos são passíveis de punição. Que tudo o que se faz em vida, será cobrado após a morte. Mas meu ceticismo nunca me permitiu acreditar em nada. Para mim, nunca houve nada além do aqui e agora, nada de inferno ou purgatório para os que forem maus em vida. Descobri, porém, que não é necessário morrer para sofrer punição por uma vida desgrenhada e egoísta. A própria existência, quando repleta de dor e sofrimento, já pode se apresentar como punição suficiente. E no meu caso, uma punição prolongada, já que me negam a liberdade que anseio, a meta que estabeleci para alcançar, enfim, a derradeira paz. Já que me negam o alivio da morte.
E enquanto a morte não chega, cá estou eu, preso nessa sala terrivelmente clara, minha visão quase nublada pela luz fosforescente. Minha prisão feita de metal, espuma e tecido, inclinando minha cabeça levemente para cima. A parafernália ao meu redor, tal qual um monstro mecânico à espreita, vigiando-me, monitorando-me, lendo minha saturação, meus batimentos cardíacos, contando cada segundo que me resta de vida, ao som do BIP, BIP, BIP.
E esse ser monstruoso e sádico permanece esticando seus tentáculos, invadindo minhas artérias, com suas unhas de metal pontiagudo, penetrando-me boca adentro com suas presas de plástico, respirando por mim, empurrando para dentro de meus pulmões seu hálito gélido, artificial. E meus carrascos, periodicamente surgindo a fim de moverem meu corpo moribundo para esquerda, para direita, deixando-me de bruços, de lado, de barriga para cima. Todos paramentados de camadas e camadas de tecido, máscaras, tocas, viseiras, luvas de látex, vigiando-me por trás da cabine de comando do CTI e passeando de quando em quando ao meu redor, empurrando seus carrinhos repletos de instrumentos de tortura que espetam-me, entorpecem-me, embriagam minha mente, por horas, dias, semanas, quiçá, meses, até o dia em que sinto a vida esvair-se do meu corpo, os sons ritmados da máquina acima de mim, transformarem-se num apito agudo, BIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIII
E quando enfim alcanço a paz, ante a tortura desses momentos em que a vida sem limites cobrou seu mais doloroso tributo, resta ao meu algoz de plantão vir cobrir meu rosto com o lençol e anotar em seu diário da morte a hora do meu óbito:
00:00

Arte: Allan Nascimento