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A caixa

Márcia Plana

Estou à beira da loucura, mas as palavras me salvam, não são qualquer lero-lero, a poesia, por exemplo... Todavia, agora a respiração me falta, os meus pensamentos são chamas de delírios. Sinto calafrios, transpiro, transpiro, transpiro, transpiro, piro, piro, piro, mas não respiro. A loucura me come por dentro, invade os meus poros. Imperceptivelmente, desliza nas camadas celulares, rompe as vibrações sonoras e quando engole os ares, corta a voz e agarra-me uma dor de garganta. A palavra presa não respira. Emudece. Fecha o canal. Eu sou só suor, os vírus trancam-se numa caixa, fazem sua morada, bebem vinho e alimentam-se das sensações do meu corpo.

Vejo o mundo sem ver as frequências sonoras, serpentes encobrem meu silêncio, a surdez prolifera-se. Já não sinto o cheiro do café fresco de minha avó pela manhã. Os toques perdem-se epiderme adentro. Ninguém quer viver sozinho, os vírus multiplicam-se. O mundo entra em pânico, fecha as portas, isola-se. Vivo a margem do ringue sanguíneo. No entanto, os vírus estão antepostos de seus postos, são reagentes que comem minha visão e fazem cirurgias da carne ao pó, alarmam-se, fazem festas, contudo agem na surdina. Entro na escuridão do meu centro e penetro de uma vez na caverna de meus membros. O coração palpita à arritmia. As fraudes dos medicamentos ludibriam a invisibilidade dos pontos salivais, a voz seca salta, tossicada.

Permaneço em silêncio.

O despertador resmunga, mais de uma vez. As paredes devem ter escutado, mas os meus ouvidos não encontram nenhum som. Meus olhos continuam fechados. Não faz diferença se é manhã ou noite. A madrugada predomina todos os horários. Nem manhã, nem tarde, nem noite. A lua se confunde com o sol. Sempre é madrugada. Silêncio. O frio prevalece em meu território. Não vejo, não ouço, não sinto.

Minha vó encontra-se ao meu lado, segurando minhas mãos. “Acorda, Pandora, já são sete horas da manhã”. Meus olhos continuam fechados, mas ela insiste, aperta minhas mãos, agora com força. É o inconsciente que prescreve as ações, porque não tenho ciência da imobilidade dos meus músculos.

- Acorda, menina! Já são sete horas da manhã! – repete, incansavelmente. Uma lágrima salta de seus olhos e vai ao encontro do meu corpo molhado sobre a cama. Terra fértil para o plantio.

Entretanto, uma forte dor de cabeça inflama meu cérebro, acercando todos os membros. Um minuto de alívio! Tento um abrir de boca. Paro, agora... ouço um quiriri-quiriri, quiriri-quiriri, longínquo como se ensaiasse a canção para o final da minha vida ou o nascimento de outra.

Assim, fazem flores, frutos e folhas no outono. A grande estreia do musical acontece às sete da manhã. Todo dia, o repertório é símil, contudo, nunca o mesmo, assoviam anunciando o diário. Ainda na cama, os festivais de vozes perfuram as frestas da janela do meu quarto numa sinfonia de beija-flores. Ainda não sou capaz de ouvir. Escuto apenas a marcha fúnebre, assolando milhares de covas, a parte que coube do latifúndio da vida, sem visitas, nem um último adeus, mudo da palavra não dita, na inexigência dos cortejos cortados pelo silêncio anunciado na TV. Em fileiras, caminham os mortos corroídos pelos males do mundo. A orquestra busca os rastros dos fios solares. A passarada insiste. Ainda é tempo.

As notas similares confundem-me os tons e os sons. Agora, é tudo ruído na composição popular. À noite as panelas tornam-se pandeiros e tambores que reivindicam a vida, manifestam-se em improvisos, resistem às modas. Mas eu não escuto a melodia que vem me acordar. Os sons guturais usam escalas palpáveis para me contar que tudo não passou de um sonho adormecido ou...

A ópera continua na sinfonia do concerto, homens mascarados cercam-me, uns vilões, outros mocinhos. É premente fechar a caixa. Eu me movo lentamente, puxo os cobertores e cubro-me da cabeça aos pés, como se para protegê-la e esconder-me das figuras sinistras e fantásticas que deitam ao meu lado. Lanço um grito, ainda sufocado.

- Vó, a caixa...

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Arte: Diego Chiaruttini

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