
A última parada
Márcia Plana
lava a mão
lava a mão
lava a mão
Virge Maria que foi isto maquinista!
Em outono, cada dia chove um pedaço. Caminhada, ônibus, trem, metrô e caminhada. Sérgio gasta em torno de duas horas e trinta minutos para chegar ao emprego. Ultimamente, por milagre ou maldição, senta com tranquilidade como se estivesse num balanço, vai e vem, vem e vai, assim curte o movimento do trem, fone no ouvido. “É o pau, é a pedra, é o fim do caminho. É um resto de toco, é um pouco sozinho”. Parece sonho. Faz anos que trabalha em São Paulo e nunca sentiu o gosto do assento. Hoje, consegue sentar, estirar os braços ao longo do corpo e distender os músculos das pernas, numa percepção de pisar o chão firme. O corpo fica mais leve e carrega a mochila no colo sem incomodar os outros passageiros.
vai devagar
para respirar
pouca gente
pouca gente
pouca gente
As cadeiras estão todas ocupadas, ainda há pessoas que viajam em pé. Mas não passam da soma das contas dos meus dedos. Há também o comércio ambulante. A fome sem nome é maior. Mudou o produto, agora é álcool gel, máscaras e sabão. Os marreteiros são capazes de transitar em horário de pico. Todos os transeuntes, apesar dos traumas promovidos pela Covid-19, estão aparentemente confortáveis. Sérgio até se sente cidadão, pode respirar no momento que o mundo não respira. Há espaço para saborear o ar, mesmo comprimido pela máscara. Agradece aos estudantes. Estes estão realizando atividades em casa, assim como muitos operários que gastam suas energias na produção em home office.
vich! trabalha
vich! trabalha
muita gente
muita gente
muita gente
“Atenção senhores passageiros, pararemos um instante para a regulagem do ar condicionado”. A mulher de jaleco branco à frente de Sérgio reclama “Todo dia é a mesma coisa”, o rapaz próximo à porta responde em eco “covardia o ar parou, parou”. Sérgio sabe que está condicionado ao trabalho duro e essencial. Mas qual trabalho não é essencial? Uns trabalham em casa, outros aguardam em casa, outros reinventam-se, outros, como Sérgio, são obrigados a enfrentar o tráfego para chegar ao emprego e manter o país funcionando
andando
andando
o ar parou parou
parou, andando
andando, andando
Sérgio sente o movimento vagaroso dos passos do transporte que correm entre os trilhos. Olha pela janela, passa uma moça com uma criança nos braços, passa um menino sentado na calçada, passa uma fila enorme de gente, passa um cachorro atravessando a rua quase nua, passa uma escola fechada, passa uma fábrica vedada, passa, passa, passam os minutos do ponteiro do relógio, passam apenas quatro estações. O homem de cabelos grisalhos que estava ao seu lado levanta. Provavelmente, chegou ao destino. Uma mulher de vestido longo pede permissão para ocupar o lugar agora vago. Tira da bolsa um livro. O título ficou encoberto pelas palavras das páginas abertas. Entretida, sorri com os olhos até que abaixa a máscara sob o queixo e agradece pelo som. Desconcertado, Sérgio arranca o fone do ouvido e enfia-o no bolso da blusa. Perdeu-se o conceito de cidadania.
olha a máscara
olha a máscara
olha a máscara
na não máscara
O nosso personagem enche os pulmões, consegue tomar o ar, mesmo comprimido pela máscara. Esta não o incomoda nem um pouquinho, pelo contrário, salva-o das gotículas que, por ventura, flutuam pelo vagão. Há muitas faces ocultas que o acompanham no trajeto, a maioria está coberta pela diversidade de retalhos: floridos, coloridos, ou sombrios e frios. É o atrativo no percurso longo do curso da pandemia. A temperatura, neste intervalo, oscila entre a febre e o gelo. Isto quando o ar artificial, o ar dos ventiladores não falha. Sérgio conhece muito bem os vagões lotados - espremedor de laranja, enxame de abelha, formigueiro, lata de sardinha. Mas, neste instante, está diante da moça que fecha o livro.
Chegaram à última parada. Os olhos sorriem novamente. Sérgio pisca. Chega na empresa, lava as mãos.
É preciso muita força
muita força
muita força
Quando tudo isto acabar, o operário, o estudante, o passageiro vão poder se entreolhar e apertar as mãos com dignidade e qualidade de vida ou vão continuar a ser carne moída?
Virge Maria que foi isto maquinista!
