top of page

O privilegiado 

Marcos Moreira

Nove horas da manhã ele acorda. Vai buscar pão. Dia sim, dia não ele faz isso. Mercado, uma vez a cada quinze dias. O trabalho em home office tem essa vantagem – conseguir respeitar o isolamento social, mantendo a família segura, e, ainda, garantir o sustento da casa. Uma vantagem imensa num país desestruturado em que o desemprego e a informalidade são efeitos colaterais da pandemia, tão nocivos quanto os sintomas físicos da doença.

Mas trabalhar em casa não significa trabalhar menos. Ele descobre isso logo nas primeiras semanas. Videoconferências dia sim e outro também; relatórios e mais relatórios sem funcionalidade alguma; metas impossíveis, cobranças incabíveis. Uma busca desenfreada para fazer valer o salário que lhe pagam, por ele nem precisar sair de casa para garantir seu sustento. Um jeito de fazê-lo pagar pelo privilégio, que nem privilégio é e sim uma circunstância adversa à sua vontade. Que só é privilégio quando comparado à condição de outros menos favorecidos. Mas que privilegio há, na realidade, em ficar preso, trancafiado em casa, com o dobro de trabalho, o triplo de chateação, uma mulher com mania de limpeza e um filho hiperativo?

Ele pega duas bandas de pão com manteiga, o copo de leite com Toddy (detesta café) e segue em direção a seu escritório rumo à primeira reunião do dia. O escritório – há de se entender – é uma mesinha de cor mogno num canto da sala, cheia de bibelôs e porta-retratos. Um notebook que mais trava do que funciona, uma impressora, sempre sem tinta, um caderninho e uma caneta Bic completam os instrumentos de trabalho.

Fecha a câmera e o microfone e assiste à reunião mastigando pão, torcendo para não ser chamado a falar enquanto ainda come. E logo a mulher levanta e chega reclamando: “já falei pra não colocar o copo aí que mancha o tampo!” E ele respondendo mentalmente que ainda não inventaram copo que flutua no ar. “E esse farelo no chão? Não é você quem limpa!”; e “já falei pra não escancarar a janela assim que entra pó”; e “terminou de comer, leva a louça pra cozinha, porque não sou sua empregada!”; e “está de dia, desliga a luz que ninguém aqui é sócio da Enel”. O homem já não sabe se ouve as broncas da mulher ou as do chefe.

Acaba a reunião. Agora é enviar cinco e-mails, responder outros dez, entrar nos grupos de WhatsApp apagando mensagens de "bom dia" e os memes, para ver se encontra aquela mensagem importante que o chefe diz ter enviado na semana passada. Mas de repente, não mais que de repente, chega ele, aquele que com apenas seis anos de idade consagrou-se o terror da casa: O Moleque.

O travesso acorda cem por cento recarregado! Ele liga a TV e num instante aquela live que o homem precisa assistir, ganha de trilha sonora a risada do Bob Esponja. Mas o molecote não senta no sofá para assistir quietinho. Não. Ele fica em pé sobre o assento. E vira de ponta cabeça, e dá cambalhota, e joga as almofadas para cima, e as espalha pelo chão. Logo tem bola na sala, quicando do chão ao teto, batendo na cabeça do pai, na escrivaninha, quase derrubando o computador! E começa um tal de “pai, olha essa luta do Naruto”, e “pai, olha o que o Robin falou pra Estelar”. Liga o videogame, e “pai, olha o que eu montei no Minecraft” e “pai, abri outro mundo no Sonic”. E o coitado querendo ter a velocidade do Sonic para fugir rápido para bem longe dali...

E não adianta insistir para que o garoto vá tomar sol no quintal, chutar bola lá fora, andar de bicicleta. Ele fica ali, ao redor do pai, chamando-o, mostrando tudo o que passa na TV;  seguindo-o, até quando vai ao banheiro, atento ao som da descarga para ficar na porta esperando-o sair. Ele tem sede quando o pai tem, vontade de usar banheiro quando o pai usa, de falar justamente quando o pai precisa escutar o que o chefe está falando naquele momento.

Então chega a hora em que a professora manda atividade para o celular da mãe. Inicia-se a III Guerra Mundial! Ela, já de chinelo na mão, persiste, às vezes aos berros, para o menino fazer a lição. E o menino chamando o pai, porque “esse sim tem paciência pra ensinar!”.

Ele olha o relógio. O dia se foi e não fez metade do que devia. Sabe que terá que ficar até altas horas acordado, novamente, para dar conta do trabalho a ser entregue na manhã seguinte. Precisa respirar, esticar as juntas. Vai até a varanda, observa o céu alaranjado pelo pôr-do-sol. O pestinha, óbvio, acompanha o pai. Dali, os dois veem passar na rua o vizinho, junto à mãe. Ele é um coleguinha de escola do garoto.

O moleque dispara: “pai, posso chamar ele pra chutar bola?”, “jogar videogame?”, “brincar de boneco?”, “assistir desenho?”, “posso, posso, posso?”. Mas o homem não deixa. “Estamos em isolamento”, “não recebemos visitas”, “olha sua bronquite!”, “é pro seu próprio bem”, “não queremos você contaminado”. O fedelho, como se não entendesse, insiste, faz manha, ameaça crise de choro.

Coloca o pirralho para dentro. Detesta birra, coisa de criança mimada. Ameaça castigá-lo, “sem desenho”, “sem videogame”, “se controla menino, se controla!”.

Mas o menino, descontrolado, chorando aos soluços, quase sem voz, mesmo sob a ameaça da cinta, já na mão do pai, grita, em suplício:

– Eu não aguento mais QUARENTEEEEENA!

O pai recua, olha para esposa, sem reação. O menino, soluçando, completa:

– Eu só quero brincar. Quero ir pra escola, ver meus amigos. Eu não tenho ninguém, pai, só vocês! Mas você nunca pode brincar comigo!

O pai emudece. Deixa a cinta escorregar por entre os dedos, abaixa-se, aperta forte e ternamente o filho entre os braços, e se segura para que as lágrimas que se acumulam em seus olhos não desabem em sua face.

Ele espera o pequeno acalmar-se, coloca-o no banho e, sem dizer uma palavra, troca olhares com a esposa. Olhares contemplativos, complacentes, coniventes, comovidos. Eis o privilégio: o privilégio de ter a quem amar, a quem se dedicar, com quem compartilhar esses momentos difíceis de pandemia, de isolamento social, de distanciamento. Um privilégio que ele, propositalmente, tem ignorado em nome de uma rotina estafante e, por vezes, sem sentido.

O menino sai do banho e se troca. Sentam juntos, em família. O trabalho, acumulado na escrivaninha, mas sem prato na mão enquanto termina mais um relatório. Agora são os três à mesa de jantar.

Ainda triste, a criança dorme cedo. O pai muda o horário do despertador do celular e se deita também.

Às nove, mãe e filho acordam com o som de uma música animada. Seguem, o menino sonolento e a mulher irritada, para fora dos quartos, em direção à cozinha. O queixo de ambos quase cai.

À mesa, um banquete os espera. O pai, junto à porta, camisa regata, bermuda, chinelo e boné na cabeça.

– Bom dia família.

– Que isso, homem? Você não tinha que estar trabalhando?

– Acordei mais cedo e adiantei o trabalho. Já avisei meu chefe. Vou tirar o resto do dia de folga.

– Você vai brincar comigo hoje? – pergunta o pequenino sorrindo o mais feliz sorriso do mundo.

– Claro – diz o pai, abraçando-o ante o olhar marejado da esposa.

– Do que você quer brincar primeiro?

Logo o trabalho estará acumulado de novo. Mas deixe isso para um outro dia...

image.png

Arte: Valeska Oliveira​​

bottom of page