
Instinto básico
Marcos Moreira
A mesma rotina todo santo dia: acordar, tomar café, me trocar e depois de três conduções lotadas, ficar oito horas preso dentro de uma repartição pública, preenchendo relatórios e mais relatórios, cinco dias por semana, quatro semanas por mês, 11 meses por ano. Como poderia imaginar que após dezessete anos fazendo a mesma coisa, eu sentiria falta de tudo isso? Eu não poderia. Mesmo depois de tudo ter começado.
Novembro de 2019. Os primeiros rumores de uma nova variação de SARS lá na China. Mas depois da gripe viária, suína, H1N1 e a volta da rubéola, sarampo e catapora, quem ligava para mais uma gripe?
Os feriados de dezembro, as férias de janeiro, o carnaval e essa gripe made in China, que já se espalhava pela Europa, Ásia e nas Américas, foi classificada como pandemia em março. De Wuhan para o mundo! E a pergunta era: quando ela resolveria dar as caras em terras Tupinikins?
Não tivemos que esperar muito. No meio do mês de março, o vírus fazia sua primeira vítima verde-amarela. Logo tínhamos a segunda – uma doméstica da baixada fluminense contaminada pela patroa. Seguiu-se a terceira vítima, a quarta, a vigésima, a centésima, a milésima; a contaminação e a morte se espelhando da classe média à periferia, do Oiapoque ao Chuí. E nós, que até então assistíamos espantados a situação caótica da Espanha, Itália, Inglaterra e Estados Unidos, estávamos a caminho de ser a bola da vez, o epicentro, rumo ao hexa, pra frente Brasil e salve-se quem puder!
Mas eu estou me adiantando. Antes que chegássemos a dois milhões e meio de infectados e mais noventa mil mortes, o Brasil fechou. Fecharam-se as fronteiras, as vitrines dos comércios, os portões das escolas, as portas das casas. O governo, muito a contragosto, estabelecia os protocolos de isolamento social. Apenas os serviços essenciais puderam continuar funcionando: farmácia, posto de gasolina, lotérica. Frotas de ônibus reduzidas, trabalhadores em suas casas e home office estabelecendo conexões como nunca antes.
A nós, cabia nos habituar com o “novo normal”: máscara no rosto, álcool em gel no bolso e a desconfiança no ar. Vizinhos, amigos, colegas de trabalho; irmãos, mães, pais e avós – qualquer um poderia estar contaminado, qualquer um poderia nos infectar. Sem beijo, sem abraço, nem aperto de mão. Tornamo-nos prisioneiros de nós mesmos.
Enquanto o governo se atrapalhava em fornecer o pão com seus auxílios emergenciais, atolados em burocracia e má vontade, a TV garantia o circo, saciando a população em prisão domiciliar com reprises de novela e jogos da seleção. O brasileiro, rindo para não chorar, enchia as redes sociais com memes sobre a doença, que viralizavam mais do que vídeos de gato. E eu, que não posso nem ver um gato na minha frente, devido à renite crônica, fui logo afastado do trabalho por ser de grupo de risco.
Fiz uma despesa para dois meses, me tranquei dentro de casa e me afundei em maratonas de séries nos serviços de streaming. E foram só 45 dias depois, que me vi obrigado a encarar essa nova realidade.
Tudo acontece em uma madrugada em meados de junho.
Às três da manhã, levanto-me com fome depois de terminar a temporada de mais um seriado. Sigo em direção à cozinha. A dispensa, quase em estado de abandono, indica que terei de fazer o que mais temo. Sair de casa.
Espero o nascer do sol, visto-me da cabeça aos pés, o mínimo possível do meu corpo exposto, a máscara cobrindo queixo, boca e nariz, o frasquinho de álcool em gel em riste e o medo gelando minha espinha, a despeito dos 28 graus em pleno outono. Sigo contando os passos, abro o portão e saio.
Caminho por ruas desertas. É como se estivesse em um desses seriados pós-apocalípticos. Nenhuma criança na rua, nenhum idoso tomando sol no portão de casa. Até mesmo os cães parecem ter se calado diante desses momentos de isolamento. E me pego sentindo falta de ver a rua cheia de moleques soltando pipa, jogando bola, xingando um ao outro... de ver os bares repletos com os bêbados de sempre, as janelas repletas com as bisbilhoteiras de sempre, a vida borbulhando...
Chego à avenida principal. Estranho vê-la assim, desprovida de carros, de pedestres, do cheiro dos escapamentos mal calibrados dos caminhões. O ponto está vazio, o ônibus custa a passar. Só então me dou conta que sentia certo prazer masoquista com a rotina que tanto me sufocava. Como se a condução lotada, o trabalho sem propósito prático e o salário gasto em produtos, em sua maioria inúteis para a minha existência, tivessem me doutrinado, me condicionado, me domesticado a cumprir o que esperavam de mim. Sem perguntas, sem grandes questionamentos. Como se essa domesticação tivesse castrado meu amor próprio e minha faculdade de raciocínio, me forçando a, simplesmente, viver em nome das demandas do sistema, em nome das necessidades do mercado. A ser produtivo, submisso e tapado.
Enfim chega a condução, interrompendo minhas introspecções. Sinalizo e um ônibus para. Dentro, motorista e cobrador mascarados. Um ou outro passageiro sentado aqui e ali. Dou o dinheiro trocado, moeda por moeda, para não precisar pegar o troco, possivelmente contaminado. Atravesso a catraca e tento me equilibrar sem precisar tocar em nada, sem encostar na barra de ferro repleta com as digitais, as células mortas e as bactérias dos inúmeros passageiros. Ao me aproximar do meu destino, grito para o motorista abrir as portas, evitando dar o sinal. Desço e entro no supermercado.
Descubro porque as ruas estão tão vazias: todos resolveram aglomerar-se no mercado, como se o fim do mundo fosse amanhã e precisassem, urgentemente, encher os estômagos e morrerem felizes com suas barrigas cheias.
Logo no estacionamento, vê-se a aglomeração. Carros preenchendo todas as vagas. Filas de carros à espera. Pessoas com máscaras no queixo, penduradas na orelha ou caindo abaixo do nariz, passeando, para lá e para cá, entrando e saindo de seus automóveis. Pego um pedaço de papel higiênico que trago enrolado no bolso, borrifo álcool nele e passo na haste do carrinho de compras. Sigo sem saber se o estou empurrando ou se é ele que me arrasta à força para dentro do matadouro, ou melhor... do supermercado.
Na porta, um homem briga com o segurança por seu direito de entrar sem máscara. Dentro, a situação é ainda pior: pessoas amontoadas pelos corredores, lotando a fila do açougue, da padaria, dos laticínios, sem respeito algum ao distanciamento indicado. Vejo os carrinhos de compra lotados, rolos e rolos de papel higiênico e me pergunto: quem caga tanto?
As pessoas apalpando as frutas, pegando e recolocando mercadorias nas prateleiras, espalhando seus germes pelas embalagens. Fico apreensivo. Cada corredor, cada prateleira, cada mercadoria: uma potencial fonte de contaminação. Pego uma a uma das mercadorias na ponta dos dedos, borrifando álcool nas mãos e nos itens que coloco no carrinho. Mas, apesar de todo o cuidado, sou surpreendido com uma cena que me obriga a sair do mercado com metade do que pretendia levar:
Um homem de máscara abaixada, abre um pote de Nutella, passa o dedo para experimentá-la e o devolve à prateleira!
Não posso mais ficar aqui. Não posso colocar minha vida na mão de desconhecidos sem um mínimo de consciência e autopreservação. Não quero ser mais uma vítima, não quero fazer parte das estatísticas, ocupar mais um leito do SUS, ter meu momento derradeiro em uma cova rasa sem velório, sem mais anos pela frente. Por isso, sigo em direção ao caixa, pago minhas compras e saio pela rua, repleto de sacolas plásticas.
Resolvo não me arriscar no transporte público, nem mesmo no espaço limitado de um Uber. Não quero ver, ouvir ou chegar perto de mais ninguém! Quero restringir-me aos encontros virtuais, videoconferências, videochamadas, videorelacionamentos, videovida. Sem contato, sem aproximação, sem perigo.
Assim, decido seguir a pé os vinte minutos de distância até minha casa. As alças das dezenas de sacolinhas plásticas prendem a circulação do meu sangue, querendo cortar meus dedos, a cada passo, em cada morro ou ladeira. Mas junto com a dor, o esforço e o incômodo, vem o alívio. Alívio de estar longe de todos, de estar cada vez mais perto de casa e da segurança do meu lar. É quando passo em frente ao ponto onde peguei o ônibus duas horas antes. Uma mulher com máscara baixada no queixo espera sua condução. Assim que passo por ela ouço o barulho: um espirro.
Com qual velocidade as gotículas viajam pelo ar? Eu não sei. Mas, apesar de desconhecer a informação, tento ser mais rápido do que o espirro, mais rápido do que o vírus que me esperou sair de casa pela primeira vez, há tempos, para tentar, enfim, me pegar.
Corro. Corro como Usain Bolt nos cem metros rasos; como Airton Senna em sua McLaren, rumo à linha de chegada. As sacolas zunindo pelo ar, sacudindo com tamanha força, que o frágil e fino fundo plástico se rompe. As latas de ervilha quicam no chão, a garrafa de Coca-Cola estoura, espirrando o líquido negro no ar, as mexericas caindo, espalhando-se, rolando pela rua abaixo. Sou um homem desesperado correndo por minha vida. Não. Sou um bichinho acuado, saltando para longe da bocarra de seu predador, seguindo o mais básico instinto de sobrevivência.
Chego a casa com menos da metade do que comprei, deixando um rastro de perecíveis e enlatados pelo caminho. Atravesso o portão e, antes de chegar à porta de casa, me dispo por inteiro, não me importando de ter revelado a algum vizinho enxerido a minha nudez. Deixo a sobra de minha despesa no quintal, entro na ponta dos pés até o banheiro, onde me encolho em posição fetal debaixo da água morna, que leva para o ralo a sujeira que trouxe da rua.
Queria eu poder ficar aqui, debaixo do chuveiro, por quinze dias até ter certeza de que nenhum sintoma dessa terrível doença irá manifestar-se em mim.

Arte: Gerson Galvão