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Valéria Aveiro
É preciso escrever o último texto. Termino pelo começo:
Definição de quarentena: período de isolamento imposto a pessoas portadoras ou supostas portadoras de doenças.
Foi assim que aconteceu... Em um repente, estava o planeta inteiro adoecido! E de toda a dor... vieram outras dores.
O vocabulário da quarentena revela a problemática. Do isolamento social, necessário para achatar a curva de contágio, vieram: ansiedade, depressão, medo, muito medo.
O lockdown, que poderia ter sido decretado em muitos casos, nem sempre foi. No Brasil, não se quer rigidez, precisamos ser livres, até para matar o próximo. Todos têm direito à liberdade, desde que se haja dentro dos padrões. Meninos continuem de azul e meninas de rosa, por favor! Mas podemos jogar os pretos pelas janelas ou largá-los pelos elevadores à própria sorte.
Quantos paradoxos moram na quarentena que escancarou toda a escuridão! Por favor, acendam a luz! Onde está o interruptor? Ninguém sabe...
A pandemia decretada em 11 de março pela OMS fez as pessoas passarem a achar que entendem de saúde, ou de doença. A falarem sobre um vocabulário técnico, a avaliarem o que deve ou não ser feito pelos exaltados profissionais da saúde, pelos não tão exaltados profissionais da educação, pelo (des)governo. Todos a pensar que teriam solução para as mais difíceis questões que nem os especialistas sabem resolver. Basta mesmo tomar cloroquina, ou um chá.
As famílias reuniram-se em casa. Foi possível ver a planta crescer na calçada, a louça acumular-se na pia, os armários desarrumados. Aprender a fazer feng shui para deixar fluir. Organizar as prateleiras e quiçá os corações. Quebraram-se as paredes, para fazerem-se novos encanamentos, novos reboques, chapiscos, relacionamentos. Alguns naufragaram de vez! Quem suportaria conviver tanto com os próprios maridos, filhos, esposas... Vamos bater, espancar, gritar, expulsar!
A cultura é online, olha-se tudo e não se vê nada. As estantes por trás dos entrevistados, o cenário das lives: todos repletos de livros que nunca foram e nem serão lidos. “O Cirque du soleil vai falir”, anunciou-se nos jornais. Acabou a magia, a alegria, o sorriso, a arte da flexibilidade, a criatividade. Não há verbas para o sorriso. Na pandemia estão vazios os cinemas, mas repleta a Netflix, o YouTube. Estão canceladas as estreias, os shows, o teatro, mas na moda as lives, liberados os espetáculos pela internet e os telões no drive-in.
O mundo se reinventou.
antes
eu + você = nós.
agora
eu–tela–tela–você.
Nós quatro. O mundo mediado pelas películas de vidro.
E os 600 reais de auxílio emergencial foram dados aos mortos, aos ricos, aos presos, mas havia uma fila enorme de necessitados esperando, já sem a esperança de receber. É preciso retomar a economia no meio da pandemia! Produzir, consumir, gerar empregos, vender e comprar. E a comida que sobrou na mesa de um, faltou na mesa do outro.
A tia de uma conhecida fez um regime maravilhoso! Invejável! Mas a sobrinha da minha cunhada e a irmã dela, bem como várias colegas engordaram como nunca! Descobriu-se, então, que o Coronavírus mata mais os gordos do que os magros. Sorte exclusiva da tia da minha conhecida.
Os hospitais ficaram com 100% da capacidade dos leitos para Covid-19 ocupados. Do outro lado, ficaram menos lotados. Quem ia se arriscar a tratar da coluna, do estômago, do coração. “Deixa pra depois!” E campanhas foram criadas para que ninguém esquecesse de que poderiam morrer de outras doenças para não pegar essa.
As escolas ficaram vazias. Nada de gritos, crianças correndo, lousas cheias. Para evitar o aumento na lacuna da educação, foi necessário reinventar. O ensino remoto, a busca ativa, explicação por vídeos, podcasts, mensagens e mais mensagens, muitas orientações! Contudo, muitas palavras nunca serão ouvidas, livros não serão lidos, lições não serão postadas, talvez as mesmas que não seriam feitas na sala de aula, pelo simples fato de que, no Brasil, ainda não se entendeu o verdadeiro sentido do EDUCAR. Só que agora tudo está escancarado – as diferenças, os contrassensos. E todos querem se eximir! Todos! Menos o professor, que continua, como regra, sendo malhado igual Judas, só quem sem direito a nome, nem capítulo reconhecido na História.
E os rostos se esconderam atrás das máscaras e os olhos revelaram os sorrisos e os choros. Mas nenhuma máscara foi capaz de esconder o despotismo, o mau-caratismo, a falta de senso, o ódio! Os políticos que antes nos envergonhavam, agora nos matam de vergonha! E fomentam a discórdia através dos algoritmos e das redes sociais. O espaço para o debate é o território do virtual. E lá a manipulação explícita ou subliminar corre solta.
Continuando os infindáveis paradoxos da quarentena, produzimos leitores impacientes, perdidos entre um e outro hiperlink. É anunciado o Apocalipse para as livrarias e editoras, ainda que a escrita morta tenha renascido das mãos do Poeta para traduzir um possível novo amanhã.
Vamos gritar bem alto: Chega! Acabou! E terminar recomeçando, mesmo que, amanhã, no momento do ocaso, o céu continue embaçado.
Ainda não verei o arco-íris.
Os surtos da quarentena terminam hoje: 4 escritores, 40 textos, 40 ilustradores, 1 história por dia: a despeito do Dr. Carlos, ainda estamos na correnteza da morte. O instinto básico está interligado ao sonho de Krikolev, ou ao de qualquer um. No Leblon, Penha ou Botafogo, as borboletas saem da caixa em direção ao sol. “Borracha no papel para apagar o atropelamento do ladrão consciente, que quebrou o dente e caiu por terra, pessoal!” Entre fios, o susto mora ao lado. Sem controle, ouço os sons da quarentena e dou quinze passos atrás...Não há evolução! Vejo tudo na sétima tela: o matador, a enganosa morte do velho professor, permito-me a viagem... A tecla do existir está solta! O privilegiado vê, do alto do 12º andar, a felicidade urgente e segue, à margem do tempo, em busca do caminho, mesmo que nada suave, até a última parada. Não suportando mais viver dias sem cores nem sabores, arriscamo-nos a encarar o paradoxo da branca escuridão. Vai saber o que vem adiante! O inimigo invisível ainda está sem controle, feridas abertas e expostas. Por isso, abusemos do lema:
“Se puder, fique em casa”.
Espero vê-los logo mais, não à última página!

Arte: Décio Ramirez