
Terra: borracha e lápis
Márcia Plana
– Vó, posso entrar?
– Sim, com todo respeito. Façamos silêncio!
natureza sagrada
salve as montanhas
salve as pedras
salve as matas
salve as águas
salve a vida
salve a lua
salve o sol
salve o ar
– Façamos silêncio!
Aritana, uma das maiores lideranças do Xingu, ao lado do Cacique Raoni, acaba de falecer hoje dia 25 de julho de 2020.
– Façamos silêncio!
Por todas as vidas partidas. Todas valem! Não são números! São Vidas!
– Façamos silêncio!
o corpo é sagrado!
a vida é sagrada!
a terra é sagrada!
o ar é sagrado!
Vó é destas mulheres que conversa com as plantas... com as flores... com a água... com o ar... Acha que tudo tem vida e respira... Antes das cinco da manhã, coloca água no bebedouro para os pássaros no parapeito da janela do quarto. Logo é, regularmente, visitada por bem-te-vi, tuim, pintassilgo... e até tucano! Singela, a menina percebe a lágrima no rosto da avó. Toca a face da mulher que ainda está afônica.
– Vó, porque está tão triste?
A mulher demora alguns minutos para responder. Respira profundo, como se para tomar o ar. Olha as gotas de chuva a desfilarem no vidro da janela, memorando a tangível história. Esta recolhe detalhes da luta nas lutas sagradas da Pachamama, o sonho na utopia em viver na terra sem males. Assim, recupera o cotidiano na reminiscência de si.
– Eu estava participando de uma roda de conversa sobre os povos da Floresta, uma live, quando recebi a triste notícia de que... o Cacique Aritana havia nos deixado.
Posto que a avó falava pelos cotovelos, neste momento, pediu licença e foi sentar numa pedra ao fundo do quintal, embaixo do pé de jabuticaba. A chuva já tinha ido embora, contudo as marcas das feridas estavam impregnadas nas folhagens molhadas. Lá ficou durante algum tempo introspectiva. A menina deixou a avó sozinha, olhando o verde ou o nada. Foi até a sala, pegou o celular e escreveu no google: Aritana. A primeira informação que obteve foi: “Mulher empresária”. Todavia, vó não falava disso, era outra coisa. A neta insistiu na procura do significado de Aritana – “cacique de uma tribo”. Teve que vasculhar as notícias para atinar o fato. O caso era de uma liderança do Xingu, Estado de Goiás...
À tarde, vó chamou a pequena para uma longa conversa sobre a causa da luta dos povos originários. Este enredo contorna toda a América Latina e perpassa para além da floresta Amazônica. Faz anos que o fantasma do capital passou uma borracha nos fatos da história.
– Menina, pegue lápis e papel. Anote o que digo. Provavelmente, não estará nas linhas da história. Todavia, você poderá passar para frente a luta e a resistência de milhares de povos originários espalhados no Brasil.
A menina ajeitou o tapete ao lado da cama, sentou-se e com bastante atenção tomou nota das palavras da avó, interrompendo-a, com perguntas, quando considerava necessário:
– Vó, por que a senhora chama de povos originários os índios?
– Porque não são índios, minha neta. São povos. O termo índio é pejorativo e ofensivo. Desde o século XVI, revela moeda de troca, exploração do ecossistema e reafirma o modelo de latifúndio. Enquanto a expressão – povos originários – apresenta-se no plural e desmistifica a denotação de descobrimento. Vale lembrar que o Brasil não foi descoberto! Antes da invasão dos portugueses no território, outros povos já habitavam estas terras. Precisamos recuperar a história.
Apreensiva, a menina fita o fundo dos olhos cansados da avó, procurando alinhar a narrativa oculta na escritura da vida em rascunho.
– Se os povos originários vivem em aldeias, isolados da sociedade, como podem se contaminar com a Covid?
– Vamos observar bem o que acontece. As florestas, mais do que nunca, estão cercadas por grileiros, madeireiros, garimpeiros. Vira e mexe, botam fogo nas matas.
– Nossa vó! Que horror!
– Tanto os incêndios quanto a Covid-19 fomentam o extermínio de um povo. A pandemia traz à memória dor e sofrimento, tal como o sarampo, a varíola, a malária e outras doenças, que refletem a exploração territorial.
– Por isso as demarcações de terra são importantes para a sobrevivência dos povos indígenas, vó?
– Isto mesmo. As demarcações do espaço territorial indígena carecem ser respeitadas. Triste! Nem todas as áreas indígenas estão demarcadas. Há muitas terras que estão no aguardo. Defender a terra significa defender os povos, consequentemente, a vida. A natureza é vital e sagrada. Esta não se descreve em palavra. É o que se é, poesia natural: montanhas, pedras, matas, águas, vida, lua, sol, ar...
– Vó, a aldeia é o lugar de convívio e resguardo dos povos. Eles possuem outro jeito para se proteger da contaminação?
– A cultura destes povos é rica e diferente. Eles valorizam a natureza e utilizam práticas sagradas para evitar as doenças. Os povos indígenas desenvolvem hábitos de promoção da vida.
– Curioso...
– Menina, pegue minhas anotações na escrivaninha e veja o veto da lei.
– Não acredito! Aqui mostra que o Congresso vetou o acesso à água potável, o fornecimento de material de higiene e a oferta emergencial de leitos!
– Precisamos acompanhar as votações no senado, desconfiar das mídias, ler o não escrito. E estarmos atentas aos projetos que promovem a vida ou aqueles que são contra a vida.
– Acompanhar o Congresso! Direito de lei? Quase nada disso aparece nos livros escolares!
– É, menina, o material precisa ser revisto e os textos relidos.
Vó acende a luz e deixa a janela aberta para o quarto continuar tomando ar...
– Menina, agora é com você. Tem muito trabalho, espero que saiba o que fazer.
Vó levantou, deu um beijo no rosto da menina, foi até a rede balançar e esperar no amanhã outra história.

Arte: Henry Kelvin dos Santos Sena