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Atropelamento

Márcia Plana

Pego a chave da palavra, que há tanto tempo está presa na garganta. Eu não sei o que escrever, mas preciso preencher estas linhas.

O mundo pós-pandemia adiciona aos capítulos da vida. Não busco aqui traçar pura e simplesmente os noticiários da telinha, nem o imaginário fantástico de suas novelas repetidas. Quero a carne, CARNE, os batimentos cardíacos e o movimento das ondas sanguíneas, com verossimilhança e sensibilidade da célula em respiração.

Não sei fazer a conta de quantos óbitos são. Na verdade, não sei se quero calcular. A matemática, neste momento, é dolorosa. Sinto a falta da Ana, da Maria, do Aritana, do Pedro, do Severino e da Severina, bem como de todos os W, Y, Z das milhares de pessoas que nos deixaram este ano.

Levanto um pouco da cadeira, estico os braços, estou cansada, não das palavras que deitam nas páginas, mas cansada-cansada-cansada de tudo: do não escrito, do não lido. Ainda não terminei... o verbo ficou no intervalo, escondido no interstício. O vento invadiu o dentro, espalhando pelos poros da casa as anotações indizíveis que se agarraram ao esquecimento.

Vou até o espelho, mas não tenho coragem de me ver. Penteio os cabelos e coloco a máscara para me proteger (ou proteger o outro?) Quem sabe até me esconder? Não devo nada a ninguém, mas carrego todas as dívidas do mundo, de uma história que não foi contada, mas está nas esferas do globo ocular. Preciso sair, por um instante, escapar-me de mim, estou sufocada, preciso respirar.

Pego a chave do carro, que há tanto tempo está parado na garagem. Giro-a na ignição, mas o motor não responde, custa a pegar. Insisto. Empurro. Pega no tranco. Saio perambulando pela avenida afora. As ruas não estão mais nuas de automóveis. As marcas dos pneus misturam-se em franjas e centros. As luzes dos semáforos me cegam. Não me encontro daltônica, mas as cores diagnosticam minha miopia. Estou entre o vermelho e o amarelo sempre. O tráfego está parado. Há pessoas nos faróis. Talvez nunca viram o auxílio emergencial. Também, o que se faz com as migalhas aprovadas no congresso? Algumas pessoas vivem pelas calçadas. Estão com os rostos desnudos e o estômago virado do avesso.

Buzino.

Contudo, nem um passo...

Desafinados os transeuntes: alguns sem máscaras, mas com medo, não se cumprimentam, caminham na frialdade ao se verem. As filas dos bancos dobram os quarteirões. As lojas, apesar do cordão amarelo, estão lotadas. O dinheiro é uma farsa, não compra a vida. Bertoleza juntou todas as suas economias para adquirir sua liberdade. Enganou-se! O patrão cego, agora morto, deixa aos filhos a tarefa de cobrar a mulher, com juros, ao invés de pagar-lhe por seu suor. 

Diadorim transveste-se de homem para lutar com os homens. No banco de trás, a mulher é morta.  Se é a cor da pele, sua escolha sexual, seu poder, seu olhar nos olhos... 

BIBIBIBI. 

É morta quando lhe tiram o filho do ventre... no alarme das navegações, quando não demarcam o território indígena. Tive que buzinar, mas as mulheres não saíram do caminho, nem tão pouco os que gritam que “vidas negras importam”; nem aos que conclamam “arroz, feijão, saúde e educação”. "Ei! Você, no trânsito também é explorado". Parei o carro no caminho – como a pedra no meio do caminho...

Em frente a uma pizzaria, os policiais advertem um garoto negro. Lembrei de Dora. Menina ainda, a varíola havia roubado a vida dos pais. A mãe lavadeira, os filhos esquecidos pela política do governo. Acolhida tão simplesmente pelos Capitães da Areia. A resposta pela luta da sobrevivência foi a morte. A Covid assola a periferia de forma avassaladora e não se vê como a varíola, a febre amarela... e não sei mais o quê. 

Está complicado, o amarelo predomina o território. Eu não ando, arrasto-me sem sair do lugar, na espera do verde tornar-se azul. Desconfio. Posso fazer uma pergunta? Só uma apenas, diante de milhares de questionamentos em minha mente... O farol fica azul? Na cidade, nem o céu é da cor da tinta. Mas eu aguardo. Adiante, uma escola aguarda o amarelo. O certo seria o verde, a mistura do amarelo com o azul. No entanto, não existe o azul para fazer o verde. Dói em pensar nas crianças que não têm acesso à internet. Nos professores que se reinventam, diariamente, com tanta dedicação para obterem um “alô”. Minha prima me disse que as aulas nas escolas vão voltar aos poucos. Posso fazer mais perguntas? Sei que não serão respondidas. Mas vou perguntar. Como voltar? São crianças? As turmas são superlotadas? Lecionar para um terço?

Acelero. 

Uma menina com uma sacola de supermercado atravessa o trânsito.  Meu Deus, que coragem! Dói em pensar nas casas sem luzes elétricas, na água não encanada, nos esgotos abertos. São os trabalhadores de mãos calejadas que sustentam o país há milhares de anos que estão nas ruas. E joão sabe bem disso! Esmerilhou-se de fome até se tornar um arquivo de metal. Quantos arquivos históricos a Covid vai visitar? 

Buzino. 

Há sempre um tumulto à frente. Olho no retrovisor e vejo as cicatrizes abertas, não no não respirar de hoje, mas no reflexo do ontem: o clarão avermelhado queima-me as vistas e a vida dos povos originários. Povos sensíveis e resistentes, porém, sujeitos em grau crescente do contágio de doenças múltiplas de anos passados.

Calo-me.

Dou meia volta, procuro fazer o retorno. Uso óculos, não tenho em mim a cegueira branca de José Saramago. Talvez, eu saiba do remédio, mas o amargo não chega ao fim. Sempre usei óculos para perto e para longe. Mas por que eu não vejo? 

Buzino.

Acabou, tudo acabou... Que nada! A visão continua mais turva que nunca, não consigo escrever uma linha, neste vermelho hemorrágico. Viro a chave para desligar. Sinto a morte próxima e tenho medo. Perco minha face no tempo da história. As máscaras não sufocam a voz que não gritei no antes. 

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Arte: Beatriz Bentes

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