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Na correnteza da morte

Valéria Aveiro

Era plena pandemia e não se tinha nem notícia de que a estatística de infectados começasse a diminuir no Brasil. Por outro lado, só se falava em reabertura. Número de mortos? Já se perdeu a conta faz tempo! Subnotificação, falta de testagem e negacionismo versus painel da tragédia, um caso a cada esquina. Diante disso, Caronte, o barqueiro de Hades, carregava as almas de um lado ao outro com uma demanda frenética!

Programa-se para abrir as lojas, o comércio todo ativo!

Naquele dia, diante do anúncio das portas prestes a se levantar eram milhares na região do Brás. Revira daqui, revira dali... O que precisava ser comprado mesmo? No meio da balburdia em que se misturavam os mascarados ao meio dia, não havia espaço para a tristeza.

 - Comércio foi autorizado a reabrir desde o dia 10 de junho! Vamos aproveitar, minha gente! É a fase laranja da retomada. Vamos aquecer a economia!

Os comerciantes, felizes com a retomada, abriram antes do horário previsto e fecharam depois. Abre a porta, Mariquinha! E é grito na calçada, funcionários avisando o grande feito do retorno, empolgação! O período previsto de 4 horas era muito pouco para tantas necessidades dos compradores a serem supridas: meia, calça de moletom, camiseta de personagem em promoção...

Onde está o distanciamento social? O álcool em gel? A mão lavada com sabão? Era um tal de pega, dá uma olhadinha e desiste. Quem queria de verdade gastar?

O comércio ambulante também estava a todo vapor. Quanta alegria! As barraquinhas se acumulavam, eram oportunidades únicas de vender e comprar. O dinheiro circulava de mão em mão, verdade que nem era muito... Quem tem dinheiro diante da recessão gigantesca?

No meio da multidão não se enxerga ninguém! É bem verdade que, curiosamente a D. Maria já havia tocado em umas 10 peças de roupas, em diferentes cestos e lojas, quando colocou a mão no sorvete e o sorveu até a última migalha da casquinha. Só que ninguém percebeu a máscara no queixo e a turba seguiu, enlouquecida, em busca daquele blusão para o inverno que se aproxima.

Enquanto isso, no submundo, Caronte se preparava para transportar a fila de almas que, agitadas, reclamavam pela espera infinita.  

- Onde está a senha? Quando vamos poder sair daqui?

-  Eu ouvi falar que o comércio já reabriu hoje. Eu não sei quem me mandou para cá. 

- Quero retornar, tenho que comprar umas blusinhas de presente para o meu neto.

Caronte, impaciente, com seu rosto sombrio e sua barba branca, içava a embarcação em ruínas e remava com uma vara, atravessando o rio da dor, de um lado para o outro, praguejando sempre, cansado da missão rotineira e interminável...

Neste dia, não se sabia quem, qual o nome, o rosto, a identidade daquelas almas. Só se sabia que tinham a missão de se despirem de seus sonhos durante a mitológica travessia e, assim como na Terra, pagar algumas moedas pelo serviço.

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Arte: Kanto Kiel

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