
Caminho (nada) suave
Marcos Moreira
“Absurdo, absurdo!” – repete o professor a si mesmo, enquanto ouve a discussão na reunião pedagógica em videoconferência. O assunto em pauta: a volta às aulas. Depois de meses de aula remota, com o segundo semestre já avançado, o governo decide que é hora de voltar às aulas presencias. Pouco importa que as recomendações da OMS indiquem que é necessário esperar uma maior estabilidade na fase amarela da quarentena. Pouco importa que não haja condições de atender os protocolos de segurança e garantir a proteção de alunos, funcionários e professores. Aliás, educadores são os que menos importam nessa questão. Há tempos os meios de comunicação têm minado o respeito do público por seus professores com matérias tendenciosas que deslegitimam reivindicações da classe por melhores salários e condições de trabalho. Educação não gera lucro. Pior: uma educação de qualidade pode fazer o povo pensar! O melhor é ter uma população tapada que cumpra seu papel de subordinada, sem questionamentos. E nessa lógica de manter o povo como massa de manobra, nem se quer os alunos importam! O que realmente importa, especialmente em ano de eleição, é atender ao clamor popular para garantir a maioria dos votos válidos. E muitos pais, a despeito dos perigos de contaminação, não veem a hora de terem onde depositar seus filhos seis horas por dia, cinco dias por semana. O perigo é real, mas parece invisível aos olhos da ignorância generalizada. Afinal, enquanto ninguém próximo é vitimado pela pandemia, a vida segue e tudo soa como exagero. O perigo sempre mora ao lado...
“Não quero perder meu emprego!” – pondera a auxiliar de limpeza. O salário é pequeno, é verdade. Mas tem sexta básica e vale transporte. E com os quarenta minutos de ida e volta entre sua casa e a escola onde trabalha, ela se exercita e aumenta a renda com o dinheiro economizado com ônibus. Ela agradece a Deus por ter permanecido no emprego, mesmo depois que a prefeitura substituiu a empresa que terceirizava o serviço de limpeza, reduzindo de nove para três o número de funcionários, a fim de cortar gastos. É claro que agora, com a escola vazia, o trabalho está mais tranquilo para ela e suas duas companheiras de trabalho! Mas dizem que os alunos logo estarão de volta à escola. Pelo menos foi o que ela ouviu enquanto tirava o pó na sala de coordenação. A coordenadora, em reunião com os professores pelo computador, dizia que para garantir a segurança de todos na volta às aulas, as salas terão de ser limpas a todo o momento e até os panos de chão terão de ser passados a ferro! Se for isso que deve ser feito, ela fará para manter-se trabalhando. Mas se pergunta: “será que vou ter que trazer o ferro de casa?”. Afinal, se na escola mal existe pano de chão, o que dirá ferro...
“Como os meninos vão fazer lição?” – questiona a mãe, lançando um olhar de tristeza para seus três filhos. Tem apenas um celular velho, com tela rachada, para os três cumprirem com as atividades escolares. Mas a internet, ela rouba da vizinha. Ou pelo menos roubava antes de trocarem a senha do wifi! Agora, vê na TV o governador e o prefeito dizerem que as aulas voltam em menos de dois meses. Os meninos já se cansaram de comer ovo todo dia, que já nem custa mais 30 por 10 reais! Na escola, tinham lanche na entrada, comida boa e farta na merenda, cada dia uma coisa diferente. O auxílio emergencial ajudou, mas água, luz, aluguel e comida para cinco – contando ela, as crianças e o marido – consomem o dinheiro. E agora, até o chinelo do menor resolveu quebrar a correia, que já estava remendada com prego...
“Que tédio” – suspira a moça na janela do sobrado onde mora, ao olhar a rua sem vida. A essa hora, estaria se preparando para escola: arrumando o cabelo, escolhendo calça, tênis, batom. A rua, a vila toda, logo se encheria de seus colegas com uniforme branco de brasão do município no peito, indo em direção à escola onde estudam. Ela não entendia tudo que os professores falavam, confessa. Mas gosta da escola. As aulas são legais e ela sempre se esforçou em cumprir com capricho tudo o que os professores lhe propunham. Mas agora, não se contenta com as aulas remotas, atividades na tela do celular, encontros virtuais com o professor e meia dúzia de alunos interessados ou, no mínimo, possibilitados de estarem ali, a distância. Impessoalidade, indiferença, ineficiência. E nada mata a saudade que sente das palhaçadas em sala de aula, de passear pelo pátio no intervalo, de ficar na arquibancada com as amigas vendo os meninos do nono a jogar futebol...
O professor não aguenta mais a pressão. Com a nova lei aumentando o tempo que deve permanecer em sala de aula para se aposentar, se pergunta se ele, que já não é nenhum jovem, não morrerá antes de Covid, com tanto homem de trinta sucumbindo à doença! Os outros professores o tranquilizam: “não vamos esquentar a cabeça faltando tanto tempo ainda. Com sorte as pessoas se conscientizam e o governo reconsidera!”. Entretanto, os dias passam e o governo mantém-se resoluto. Nem mesmo os inúmeros encontros virtuais com professores reafirmando a óbvia precariedade em se cumprir os requisitos de retorno, parecem capazes de fazer os pais caírem em si e os planos do governo mudarem. E os índices crescentes de contágio e projeções pouco favoráveis, são amenizadas pelo secretário da educação: “disseram que irá morrer 17 mil, mas estão errados! No máximo, morrem 1500!”. E se ter o filho arriscado a ser um dos 1500 não alarma os pais, que dirá o risco de perder um professor com vinte e cinco anos de sala de aula...
A vizinha da auxiliar de limpeza morreu de Covid. Não a vizinha do outro lado da rua, mas aquela com quem ela divide o quintal! Uma semana antes de ela ser internada, tinham conversado ali, na porta da casa da mulher, as duas sem máscara. Agora, com a doença avizinhando-se, ceifando vida em seu endereço, ela começa a se preocupar com a doença. Uma coceira no fundo da garganta a incomoda. Para de andar com máscara no queixo, passa álcool em gel a toda hora. Mas não fala nada no serviço. Teme ser mandada embora e, no fim, nem ter contraído a doença. Mas e se contraiu? Se ficar doente e deus-o-livre morrer? Não vai ter ninguém para chorar por ela: o marido arranjou outra e sumiu no mundo; os irmãos ainda vivos estão todos lá no Nordeste, há mais de dez anos não os vê. É só ela e Deus nos dois cômodos em que vive. Seria só mais uma doméstica morta, sem história a ser contada no Fantástico, sem amor, sem alguém a quem deixar saudades. Só mais um número, sem rosto, entre centenas de milhares...
A mãe está feliz. Se a TV diz que é seguro voltar, talvez seja mesmo! Um livro de atividades chegou em casa há meses e o outro, já pode ser retirado na escola. Até poderia usá-los no lugar do celular sem internet. Mas ela não entende o que os livros dizem. Não saberia explicar para os filhos o que sequer aprendeu nos seis anos em que frequentou a escola. Agora, se as escolas reabrirem, as crianças terão de volta os professores para ensiná-las, para orientá-las, para mantê-las seguras. Além do mais, as crianças poderão voltar a comer bem...
A moça se olha no espelho, feliz. Pensa em cortar o cabelo, mudar o visual, estrear aquela calça jeans que a mãe lhe comprou. Se, como diz a TV, as aulas estiverem de volta, vai poder se reunir novamente com a Ju, a Su, a Fran, a Beka, o Pedro Henrique...
Não tem jeito. O sindicato ameaçou paralisação, mas depois de um ano inteiro repondo aulas aos sábados na última greve, os professores não tiveram coragem de aderir a mais essa. E os empresários, temendo que a virada do ano letivo sem aulas presencias faça os alunos particulares migrarem para a escola pública, pressionaram tanto o governo que foi inevitável. Agora, professores, alunos, funcionários e os pais e avós em casa, vão ter que se expor ao perigo que a escola representa, com a volta das aulas presenciais. Sem mais o que fazer, o velho professor estaciona seu carro na vaga, coloca máscara, viseira, passa álcool em gel e segue direto para sala de aula onde irá receber os alunos...
A auxiliar de limpeza diz bom dia ao professor que adentra à sala que ela está terminando de arrumar. Carteiras mais distantes, chão varrido, ela avança para a próxima sala, segurando por baixo da máscara a vontade de tossir...
No portão de entrada, a mãe ouve o sinal e libera um a um os três filhos para entrarem na escola depois de tantos meses. Seguindo a recomendação, apenas um deles deveria ir à escola nesse primeiro dia. Mas ela não acha justo que apenas um deles coma merenda enquanto os outros ficam em casa comendo ovo frito...
A moça pega o pão e sobe, ainda mastigando, a máscara abaixada. Vê no corredor, em frente a sua sala, a auxiliar de limpeza baixar a máscara e tossir, para logo em seguida limpar a mão no macacão de serviço. Mas a moça não liga para isso. Ela está feliz ao lado da Ju, da Su, da Fran, da Beka. E ainda tem o Pedro Henrique...
Todos sentados, um número de alunos maior do que o indicado pelos protocolos de distanciamento. O professor, triste, deseja boa tarde a todos. Passa pela quinta vez álcool em gel nas mãos, apanha o canetão e segue em direção ao quadro branco. Ouve, ao longe, a tosse da auxiliar de limpeza ecoar pelos corredores vazios...
Arte: Isabella Gesteira
the text.

Arte: Isabella Gesteira