
Leblon, Botafogo, Penha
Marcos Moreira
Ana da Penha. Sonhava em ser bailarina. Nunca fez ballet, porém. Já fez dança de gafieira na Associação do Bairro, dançou muito pagode nos churrascos de fim de semana e lambada ao som de Beto Barbosa nos anos 90. Já dançou muito forró também: forró rastapé, ralabucho, xote e xaxado. Mas ballet, nunca.
Ainda assim, era encantada por ballet, desde que viu a primeira vez na casa da vizinha – única com TV nos arredores – uma performance de Ana Botafogo. Coisa maravilhosa, aquela mulher magérrima, de seios pequenos e corpo compacto, como escultura viva, movendo-se com graça, o vestido rodado, o cabelo preso, os olhos sonhadores, na ponta dos pés, girando, girando sobre a sapatilha, o laço rosa – que ganhava cor em sua imaginação, a despeito da imagem em preto e branco chuviscada da TV de tubo Panasonic – aquele laço parecia subir-lhe pelo tornozelo com o rodopiar ao som do piano.
Um astro girando em sua própria órbita, com sua própria estrela a iluminá-la naquele universo existente em cima do palco. Quisera conseguir verbalizar tudo isso que lhe calava tão forte junto ao peito ante a cena que a maravilhava de tal forma que...
E quantos anos tinha a bailarina? A mesma idade que a sua, na época e agora. Mas ah!, que vida diferente levavam a Botafogo e da Penha! Da Penha, que na verdade era de Miguel Pereira, região serrana do Rio, perdera os pais aos quinze, quando mal completara a oitava série. Ganhou de herança cinco irmãos mais novos, um com necessidades especiais, e uma casa na comunidade ao pé do morro para manter com seu suor. E lá foi a moça bailar logo cedo por rodoviárias e ferroviárias, na informalidade, de faxina em faxina, orbitando como um asteróide pelo espaço escuro e gélido da subsistência.
Nem o amor, que por vezes apresenta-se no palco da vida do pobre e do rico, sem distinção, quis agraciar-lhe com seu espetáculo: Zé Mário, único homem com quem se relacionou, não quis comprometer-se com uma casa cheia de crianças, mesmo que, a sexta delas, tivesse sido gerada com sua ajuda.
Mas da Penha, que bailava a valsa triste da vida, teve sua epifania de Macabeia inversa, a sua Hora da Estrela às avessas, ao deparar-se com outra Ana de mesma idade, a Ana de Meneses, a Ana do Léblon; do apartamento com vista pro mar, dos canapés, espumantes, salmões, caminhadas na orla e viagens ao Mediterrâneo; a Ana do diploma na parede, dos filhos que mal a visitaram depois de ambos formarem-se e constituírem família no decorrer dos vinte anos em que da Penha prestou-lhe serviço. E da Penha, que no mais, ficava o meio da semana toda junta a do Leblon, quando ia para casa aos fins de semana, a 120 quilômetros, três conduções e outra realidade de distância, dava-se conta que, em seu palco pobre, de casa com paredes sem reboque e sala quarto e cozinha para sete pessoas, o espetáculo da vida poderia não ser tão glorioso quanto o da Botafogo, mas era, sem dúvidas, menos melancólico do que o da Ana do Leblon.
E a do Leblon, para preencher sua existência repleta de bens, porém vazia de significados, viajava todo ano à Europa, enquanto a da Penha cuidava de seu palacete a beira mar.
Mas por indisposição de uma gripe inoportuna, uma chateação devido a uma epidemia, pandemia ou seja lá o que fosse, que invadira a Itália vindo da China, abandonou prematuramente o passeio à Europa e voltou à vista do Leblon.
E entre crises de tosse e enxaqueca, exames inconvenientes, de quê?, corona, covid ou algo assim, a do Leblon enclausurou-se em sua suíte, sem idas às compras e sem caminhada na orla, regada a antibióticos, prosac e vinho do porto. E a da Penha, a lhe servir, recolheu as sobras do farto banquete e aproveitou o enclausuramento da patroa em seu quarto, para treinar, desajeitada, os passos sobre o piso de mármore – um-dois-três-quatro, cinco-seis-sete-oito – enquanto bebericava o resto de vinho no fundo do copo, tão doce, tão leve, e se contaminava. Mas teve um último fim de semana em casa, o começo da tosse, a febre, mas a casa cheia, a família alegre, o forró rastapé, ralabucho, xote e xaxado.
Na segunda, ao chegar no Leblon, passou mal. A patroa ligou para a família buscá-la. A família levou-a ao hospital público. E o diagnóstico de Ana da Penha chegou quase junto à ligação da Ana do Leblon, dizendo que o exame, que até então não comentara que havia feito, dera positivo para corona.
Da Penha saiu do hospital para a cova, sem flores, velório, mas com muito choro. Os médicos e enfermeiros que tiveram contato com ela e os seus familiares – todos aguardaram, em quarentena, o resultado negativo dos exames. E a do Leblon, depois do isolamento em casa e de curar-se da Covid, contratou outra Ana, Maria, Joana, da Penha, das Dores, da Silva, aguardando poder voltar à Europa o quanto antes.
Apagam-se as luzes, fecham-se as cortinas, mas, diferente do espetáculo da Botafogo, este acaba sem salva de palmas.

Arte: Greta Poltronieri