
Sem controle
Márcia Plana
Quando Miguel ouvia a voz do portão ranger, corria para o parapeito da janela do quarto e lançava o olhar na figura minúscula do pai, que estava parada no ponto de ônibus. Longe, longe, o homenzinho cabia na palma de sua mão. Este acenava, até o pai percorrer a estrada e ganhar voo.
O menino não gostava muito de estudar, mas debruçava-se com entusiasmo nas aventuras em quadrinho do Sideralman, um super-herói brasileiro do ciberespaço. Passava a manhã toda lendo gibi, fazendo quadrinhos, misturando cores, apagando os borrões e redirecionava as perspectivas. Gostava de futebol, mas não podia jogar bola em casa. Então se atirava no videogame. Não via nem o tempo passar: tic-tac, tic-tac, tic-tac, tac-tic. As horas corriam assim, uma atrás da outra. Deixavam lembranças, marcas e seguiam como as notas rústicas de uma guitarra.
– Miguel, venha almoçar!
O menino respondia bem sério.
– Vou depois!
Mas depois é sempre depois, um advérbio que nunca é agora, retém o presente entre o passado e o futuro. Miguel queria viver, agarrar o instante. Brincar é muito sério, as crianças sabem disso, o tempo passa, não é um passatempo, vai além do cruzamento dos instantes, nos trezentos e sessenta e cinco dias, translação e rotação.
– Pode desligar isto? Venha comer!
– Ah, mãe! Justo agora que eu ia passar para outra fase! Vou depois.
Para não perder o ritmo da brincadeira, era um tal de “Vou depois”. Depois... Mas não tinha jeito, a insistência da mãe empurrava o jogo para depois do almoço. Esta ameaçava desligar a internet.
Mas hoje foi diferente. Logo o pai chegaria com os armamentos e os escudos de proteção, saltaria em algum lugar dentro do mapa, provavelmente, para conseguir dinheiro: um pedaço de papel, num mundo inundado de poder. Seria preciso resistir para sobreviver. O jogo seduz o garoto, numa relação de prazer e desespero.
– Ô, pai, ô, paaaaai. Paaaai...
A mãe escuta o filho e balança a cabeça. Mas se diverte com as traquinagens do garoto, sentado à frente da tela, manejando seus polegares para dar vida aos seres virtuais e interagir com as vidas vivas. A mãe sabe que o jogo é perigoso e violento. Mas não pode ocultar da criança os perigos da vida. Viver já não é um perigo? Além do que, a criança cria conceitos e agilidades lógicas.
– Pai, não vai para a direita... Abre o guarda-chuva... Abaixa a cabeça... Olha pra trás, pra trás... Segue em frente... Vai para a esquerda, um pouco mais... Não! Não! Para... Respira, segue... Cuidado! – Gotículas salivares estão no ar. – Não tira a máscara... Não tira a máscara... Aguenta, só mais um pouquinho. Calma! Calma!
O menino grita e se joga no chão. Dispositivos estranhos marcam aquela fase, espelhos, vitrais, enxames de vírus enfestam o campo minado.
– Pai, lava as mãos, as mãos, as mãos. Agora água... Vai para o rio.... Se joga...
A voz do pai sufocada pela máscara responde:
– Estou tentando (...ando...ando).
– Mergulha, mergulha, mergulha lá. Olha, pai, a proliferação de células, invadindo o território. Sai daí, pai...
A linguagem do menino mistura-se ao jogo, já não se sabe quando é a fala da criança ou do personagem. Tempo e modo intercruzam-se. A mulher precisaria entrar no universo imerso do game para compreender a complexidade da partida interminável. Está difícil, uma chama vermelha engole a mata Atlântica. É o extermínio do território, o fim de muitos povos.
– Pai, sai daí – é o caos – Pai, permaneça com a máscara. Não tira! Isto é covid.
O menino insiste ofegante. A mãe ao lado assiste a cena emudecida. É um jogo! Nem todos sobreviveriam! Um engole o outro. Precisa trapacear sem fugir às regras. É indício de guerra. O empate é um entrave. É preciso matar para viver. Será?
– Mãe, vamos precisar aumentar os pontos, joga comigo. Se não vão matar o pai.
Eliminar um a um, como a filosofia do humanitismo, um pouco mais grave quem sabe? Matava-se à toa, nem ao menos era por um quilo de batatas. Uma relação de amor e ódio. Falar o que nestas horas? Os minutos eram longos, longos... os minutos voavam, voavam, imbatíveis, baníveis. Não se controlava o inexistente.
– Vamos parar um pouco? Só de olhar estou cansada.
– Mãe, precisamos enfrentar os desafios para salvar a humanidade. Tem muitos vírus do coronavírus. Estes fantasmas são tão perigosos quanto este ser invisível que tira nossa respiração.
É preciso recuar um pouco, mãe e menino, para tomar fôlego e rever as estratégias. O menino não entende o porquê do roubo do fogo, muito menos a atitude de incendiar as matas, ignorar a vida dos povos e esquecer o genocídio e a catástrofe no planeta. Precisa se jogar por inteiro para combater o poder. O prêmio é a batalha e o questionamento, nada mais. Este jogo que escapa das mãos do menino e promove a destruição. Um jogo ignorado no fundo da periferia, com cláusulas e regras certeiras para o massacre da vida. A bomba explode na fragilidade dos campos, das franjas e beiradas de estradas.
– Vamos parar um pouco? Já disse que estou cansada.
– Não podemos deixar para depois. Depois é depois, nunca chega. Precisamos derrotar os vilões. Não está vendo que o jogo é real, mãe? O pai está ali. Eles estão armados. Sai daí, pai!
O menino aperta o controle com voracidade.
– Mãe, vem me ajudar, sozinho eu não aguento.
A mulher dobra o joelho no chão para ficar do tamanho do filho. Mas este, diminui-se, esmurra o nada com sofrimento. Mãe, porque o pai não volta, não volta? Revolta...
– Miguel, parece que seu pai está na fase do distanciamento.
– Volta pai, volta, não precisa ganhar a guerra. Eu preciso de você. Pai, pai, paaaai.
A garganta da criança inflama o monossílabo. Um soluço molhado desliza no rosto do pequeno. A mãe abraça-o para acalentá-lo. O pai briga com os adversários que rasgam o corpo da terra para arrancar os metais. O menino em fúria soca o ar à espera de conseguir mais uma vida e pergunta para mãe.
– Por quê?
A mãe abraça-o e diz:
– Já é tarde! Vamos esperar seu pai. Deixa isso aí.
– Não posso mãe, preciso tirar o pai da tela. Paaaai, paaaai!
O pai não ouve. Precisa ficar. O fogo alastra-se na floresta, destrói vidas e nuvens de fumaças avançam pela Terra. Há um bater na porta. O menino chama o pai mais de uma vez. Os toc-tocs na porta ficam maiores.
A realidade e a fantasia tornam-se uma. Ele está dentro do jogo. Quem o viu? Ninguém! Só a criança que conta para a mãe. Toca o celular, mais de uma vez, a mulher não atende. O vizinho bate à porta. O menino chora e não larga o jogo. A mãe inquieta grita:
– Que foi?
Do outro lado da porta, escuta:
– Seu marido está no hospital!
A mulher desmonta-se. A criança chora, chora...
– Não posso largar o jogo. Fica quietinho, pai.
É decretado isolamento.
Game over...?

Arte: Rafael de Souza Rocha