
A despeito
Marcos Moreira
[despeito]
SUBSTANTIVO
1. ressentimento produzido por desconsideração, desfeita, humilhação ou ofensa;
2. desgosto motivado pela preferência dada a outrem ou por decepção;
DEFINIÇÕES
1. não obstante, malgrado, apesar de [...]
A despeito do isolamento,
Milhares de militantes mascarados marcham pelas ruas, manifestando-se:
– I can't breath!
– I can't breath!
O epitáfio de Floyd, que com o rosto sobre o asfalto, sussurrava; que com o pescoço sob o joelho de seu algoz, suplicava:
– Não posso respirar.
A súplica de um homem subjugado, submisso, subvertido. A súplica, que se tornou um brado a dar voz à massa, que a despeito de representar 12% da população, agigantou-se e queimou a América com o fogo de sua revolta.
E na outra América, no hemisfério oposto, a despeito do isolamento que obrigaria a dispensa das empregadas para evitar contagio, a despeito das escolas fechadas, que lhes tiram a opção de onde deixar o filho, uma, dentre as mais de 5 milhões de domésticas do Brasil, acorda seu rebento às 5 da manhã, atravessa a cidade dentro de um coletivo e segue para longe da comunidade em que vive, rumo ao lado luxuoso e abastado da cidade, a fim de servir e garantir seus meios de subsistência.
E a despeito do desejo do menino de ter a mãe ao seu lado, a doméstica recebe ordem para passear com os cachorros e livrá-los do tédio. E a despeito de estar com o filho da doméstica sob seus cuidados, a patroa se ocupa em pintar as unhas. E a despeito do carinho e cuidado que a empregada dispensa aos filhos da patroa, ela se irrita com o menino que só queria descer de elevador para encontrar a mãe. E a madame aperta o botão do último andar para levar o choro e a teimosia da criança – que não é sua – para longe de si.
E do quinto andar, o pequeno Miguel chega ao nono. Desce, aflito por sua mãe. Atravessa o silêncio de corredores vazios rumo à luz do céu azul. E lá, no alto do nono andar, junto às engrenagens do ar-condicionado que protege os moradores abastados daquele prédio do calor abrasador do Recife, o jovem Miguel vislumbra sua genitora: um pequeno ponto lá embaixo segurando pelas coleiras, invisíveis àquela altura, os dois cachorros de raça, que passeavam para afastar o tédio. E por querer ver ainda melhor sua mãe o pequenino escala, um pé após o outro, a grade que o separa da queda livre.
A haste frágil da grade se desprende e o menino cai.
E a despeito da leveza que a pouca idade o proporciona, o corpo daquele pequeno pássaro sem asas se choca contra o chão, carregando consigo o peso de uma realidade cruel. O peso que quatrocentos anos de escravidão trouxeram à sua raça. O peso da desigualdade social, da subserviência; de um racismo estrutural que põe à margem uma maioria de mais de 56% da população, desprivilegiada, descaracterizada e desprovida de sua dignidade.
E a mãe vê o filho, ainda vivo, estirado no chão, manchando a área recreativa do luxuoso prédio com o seu sangue. Ela o vê ali, quase sem vida, subjugado, submisso, subvertido. E suplica:
— Respira, meu filho, respira.
E uma inteira sociedade de pretos e pardos, desprivilegiados e desassistidos, tenta, assim como Miguel, encontrar fôlego ante ao joelho da sociedade algoz que a sufoca. Mas diferente da minoria de 12% de negros norte-americanos que transformou a súplica sussurrada de um homem subjugado pelo sistema em um brado, os 56% desses sul-americanos silenciam-se. Resignam-se em agonia. E assistem subjugados, submissos, subvertidos, Miguel, de 5 anos, morrer após cair 35 metros por negligência; João Pedro, de 14, ser morto em sua própria casa; Ághata, de 8, ser baleada dentro de uma Kombi; Guilherme, de 15, ser executado por PMs de folga, jovens morrerem pisoteados numa ação policial em Paraisópolis, só porque queriam se divertir; uma família, a passeio, receber 80 tiros em seu carro; Marielle ser exterminada pela milícia; uma maioria de jovens negros entre a população carcerária; uma maioria de mulheres negras entre as vítimas de feminicídio; uma exorbitante quantidade de pretos e pardos desprivilegiados e desassistidos sucumbir ante a pandemia que nos assola.
E a questão que nos resta é:
Quando, a despeito da luta, ou da falta dela, as vidas negras irão importar?

Arte: Laudo Ferreira