top of page

À margem do tempo

Valdemir Carmo

Para Guimarães Rosa

 

Aqui em Riacho Seco a gente sofre, chora, proseia e ri  pouco. A lida é o dia todo e tem quase nenhuma alegria aqui. Vivo aqui com meu irmão José, de dez anos, com minha mãe Dona Firmina e meu pai, o Seu Argemiro. Meu nome é Rosa. Nome de flor e nome de cor, mas não gosto. Nunca achei que eu tivesse a cara de rosa. Há 15 anos minha raiva é esse nome.

Só conheço Riacho Seco. Jamais consegui sair daqui e, por isso, meu mundo é esta cidade do tamanho de vila no interior do interior do Pará. Aqui não tem escola, não tem cinema, não tem nada. Olho o tempo, trabalho com mainha limpando a casa. Quase só vejo os da família, a não ser quando vou ao único mercadinho daqui e encontro o filho do dono, o Guimarães.

Como será que é namorar? Beijar na boca? Será que apaixonei no Guimarães? E essa era minha vida. Até que...

Certa feita, o pai chegou em casa e disse que ele tinha a doença nova que mata todo mundo. Convite? Contiv? Não lembro o nome. Chorei baixinho com medo de o meu pai morrer e fiquei imaginando como isto chegou até aqui, neste fim de mundo, longe de tudo. A mãe ficou arreliada com o pai. Brigou com ele. Queria saber como e onde tinha se contaminado e que sirigaita teria lhe passado isso. Enquanto eles discutiam, eu e meu irmão ficamos encolhidos no barro seco do chão, sem falar nada. Criança não se mete em assunto de adulto.

Pouco depois disso, numa manhã fria, meu pai saiu bem cedo de casa, pegou a canoa e foi para o rio onde ele pescava. Pensei que tinha ido buscar mistura. Não foi. Ele nunca mais voltou.

Nossa vida, que era quase toda de silêncios, ficou muda. Calei-me e minha mãe, mais ainda. Com o passar dos dias, a tristeza dela foi ficando dura como um calo que vai crescendo quanto mais se lida. Assim, a solidão deixou ela seca, meditabunda com aquele não-brilho nos olhos... Os dias viraram semanas, que viraram mais tempo ainda. Então uma vizinha distante veio correndo avisar que meu pai fora visto em sua canoa, ali perto de casa, onde o rio faz uma curva. Minha mãe? Quieta estava e quieta ficou. Sua quietude, que já existia quando meu pai estava, tornou-se um queixume silencioso feito só com os olhos.

Logo depois, vi minha mãe embrulhar um prato de comida e sair. Eu resolvi seguir de longe, pelos caminhos que davam até o riacho, que depois virava um rio muito grande, que metia medo. Andei atrás dela até quando parou e deixou o prato na margem do rio.  Se afastou e ficou olhando. E então, vi a canoa cortando a água. 

Era o pai.

Já não o via fazia muito tempo. Estava barbado, magro, com olheiras que pareciam amargura. Corri pra perto da mãe e chamei por ele. Meu irmão, que tinha me seguido, veio correndo e nossa família quase se reunia de novo. 

Ali, no limite da terra e da água, ficamos nos olhando por longo tempo. E o tempo, por aquelas bandas, não passava. Ele olhou pra nós e chorou um choro miúdo que nunca vi homem nenhum chorar. 

Minha mãe explicou que ele ficava de longe para não passar a doença para a família. Falou que tinha ficado sabendo que ele estava vivendo no matagal, na margem do rio, comendo peixe, caça e folhas medicinais. Agora, ia passar a comer também a comida da mãe. Com tão pouca idade, eu tinha já que entender muitas das estranhas manhas do viver. Ia ficar de mal com Deus por levar meu pai assim? O pensamento me veio e se foi.

De quando em quando, eu levava um prato e deixava lá para ver se pai aparecia. Quando aparecia, me via de longe. Às vezes acenava, às vezes só chorava. Eu chorava também, mas nem sempre. Às vezes me bolinava uma fúria por dentro e ficava brava, mas nem sei com quem. Depois passava a brabeza e voltava para a vida. Me acostumei a barrer o terreiro com minha mãe, ir ao mercadinho ver o Guimarães de longe e depois levar  um de comer ao meu pai na outra margem do rio. E quando a gente se situa no tempo, o tempo muda as coisas... 

Eis que um dia a canoa veio sozinha. Nunca mais se soube de meu pai. Passou a morar em árvores? Virou comida de Anhangá? Curupira pegou? Depois disso, encruei-me num mutismo largo e minha família se encheu de mais silêncios ainda. Mainha, que já falava pouco, ficou como uma ema: mistério de pensamento quieto e aquele oco de fala. Mas o que eu me espanto mais é o seu olho cada vez mais opaco.

Como eu nunca fui de falar também, só olhava, via e guardava o meu pensar. Quis escrever, mas ainda não conhecia as letras.

Passou o tempo e ainda faço a mesma coisa: fico com minha mãe trabalhando em silêncio, vou ao mercadinho ver aquele menino bonito e levo uma merenda na borda do rio. 

Já faz um bom tempo que a mãe desistiu. Mas eu não! 

Vai que painho aparece. Vai que painho volta.

image.png

Arte: Sueli de Moraes

bottom of page