
O dente
Valéria Aveiro
Fazia dias que estava com o dente dolorido, porém, como fosse o medo de contrair Covid-19 maior do que a dor, foi empurrando com a barriga. E isto literalmente, uma vez que, há três meses sem sair de casa, engordava a cada dia.
Tentava abrandar a dor tomando Paracetamol, Dipirona, Ibuprofeno, Aspirina... e, aquele que nunca se automedicava, a essa altura, já tinha decorado o número do delivery da farmácia.
O tempo foi passando e a coisa ficando insustentável! Eram ervas esmagadas, chás, bolsa quente, bolsa gelada. Depois já chupava a pedra de gelo, o que começou até a lhe causar dor na garganta, então trocou por pedras de sal do Himalaia e teria sorvido a montanha inteira, se adiantasse para passar aquela dor.
Certa vez, estava à mesa com a família reunida, quando entrou um alimento na suposta cárie. Gritou, gemeu, urrou. Quase jogou o prato na parede! Não, não era mais possível suportar!
Levantou-se disposto a arrancar o dente. Já havia visto em desenhos animados que, caso amarrasse o dente com um barbante e outra ponta na maçaneta da porta, poderia, em um minuto, se livrar do problema. Já estava em vias de tentar essa loucura quando a esposa gritou:
– Enlouqueceu, homem! Já chega! Tudo bem que não queremos nos arriscar. Mas, assim também, não dá! Liga para aquele seu amigo dentista, fala que é emergência, agenda horário e resolve isso!
Rendeu-se e agendou a tal consulta.
Ao chegar no consultório o desespero do homem era tanto que tremia. A assistente anunciou que o dentista estava chegando. Na espera, passou tantas vezes álcool nas mãos! Estava quase acabando com o frasco, quando a moça se sentiu obrigada a chamar-lhe a atenção.
O dentista chegou, entraram no consultório. O homem recostou-se em pânico na cadeira, mesmo tendo percebido que a desinfetaram:
– Como vai, amigo?
– Péssimo! O que eu estaria fazendo aqui se não estivesse péssimo? Dor insuportável no dente.
O dentista notou que havia um suposto inchaço sob a máscara. Foi então que soltou a ignomínia:
– Pode retirar a máscara para eu verificar o que está acontecendo...
– Está louco? Eu não vou tirar a máscara nem por decreto! Aliás, por falar em decreto, você não sabe que o 64.959 estabelece o uso geral e obrigatório de máscaras, seguindo as orientações da Organização Mundial da Saúde?
– Como você quer que eu trate o seu dente, então?
– Seguindo os protocolos de segurança, claro!
– Mas eu estou com duas máscaras, a comum e a cirúrgica, o avental descartável, as luvas, a proteção ocular...
– Não adianta essa conversa mole de politicamente correto, não! Você não vai me enrolar. A máscara eu não tiro! E toma distância, está se aproximando demais de mim! Assim saio daqui direto para a delegacia. Olha que eu te denuncio!
O dentista o olhou com desconfiança, a dor, associada aos dias de confinamento e uso excessivo de fármacos, devia ter-lhe afetado a sanidade mental. Como resolveria o caso?
Tentou manter a calma.
– Olha, eu entendo você, as coisas não estão fáceis. Eu te compreendo. Confie em mim! Aqui você está seguro e, para livrar você da dor, preciso que TIRE A MÁSCARA!
Foi então que o homem teve um surto! Levantou-se, começou a revirar o consultório todo! E gritava:
– Eu sei que é de um boticão que eu preciso, só isso! Dá aqui o boticão! Agora! Agora!
Sem saber como resolver a situação absurda, o dentista pegou um sossega leão, encheu a seringa até o talo e quando viu já tinha atacado o amigo. TÁ! Foi uma agulhada só!
Quando acordou, atordoado, o dente já não estava mais na boca, somente a máscara.

Arte: Kauã Paiva