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Do alto do 12° andar

Valéria Aveiro

Estava revirando sua estante em busca de algo que ainda não tivesse sido lido para escapar um pouco às preocupações, quando encontrou o seu favorito Quintana. Abriu em uma página aleatória e começou:

 

“Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano

Vive uma louca chamada Esperança

E ela pensa que quando todas as sirenas

Todas as buzinas

Todos os reco-recos tocarem

Atira-se

E

— ó delicioso vôo!

Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada”

 

Foi após ler esse trechinho de Quintana que o rapaz decidiu:

– É hoje que eu vou falar mais uma vez com o médico. E vai ser uma conversa decisiva. Não é possível! Tem que ter um jeito de ela melhorar. Eu não desisto!

E saiu.

Já fazia dez dias que sua mãe estava internada. Diabética e com problema severo de obesidade, 76 anos, sabia que era necessário tomar todos os cuidados possíveis para não entrar em contato com o tal Coronavírus. Mas nem tudo que se deseja acontece... Um dia, sentiu-se febril, garganta seca. Começou a falhar-lhe o olfato e, quando percebeu, já sentia uma importante falta de ar. Foi ao hospital pensando em uma consulta rápida, um raio-x do pulmão e um remedinho. Contudo, recebeu a notícia de que seria internada na ala dos pacientes com Covid-19, o que significava isolamento.

A partir daquele momento, ele não viu mais a mãe. Despediram-se no corredor, onde o filho pode sentir nos olhos dela, por cima da máscara, uma dor infinita.

Ao chegar no hospital, requisitou falar com o médico, o que foi bastante difícil. Algumas horas de espera para ouvir o que seus ouvidos quase se recusavam:

– O estado de sua mãe é complicado. Ela teve que ser entubada, sem condições de tentar transferência, também não posso permitir visitas. Eu sinto muito.

O rapaz viu atônito as costas do médico se distanciando. Verdade que a vida nunca fora fácil. Já estivera em muitas encruzilhadas como filho único de mãe separada, ambos abandonados por um homem egoísta do qual ele nunca quis copiar o modelo. Mas agora era diferente, estava mesmo em um beco sem saída.

Ninguém a quem recorrer. A vida inteira tinha sido assim: somente ele e a mãe.

Recordava-se de quando brincavam na varanda, a mãe afobada em dar conta das tarefas domésticas, cansada do trabalho no escritório e ele, menino, requisitando um tempo de atenção para transbordar o seu afeto.

Depois de crescido, já sabia que a mãe lia seus silêncios e os respondia com amor. Um amor atento, ainda que não integralmente presencial. Precisava trabalhar e, mais do que isso, gostava de trabalhar! Sempre acreditou que seria uma mãe melhor dando um bom exemplo de ação social e de ser humano, aquele de quem o filho teria orgulho.

Diante do corredor e da porta do CTI encerrada, o rapaz sentiu o vazio da existência. Era pena, mas não havia aprendido a perder ninguém porque já não tinha pessoas a quem perder. Também não sabia lidar com a morte e se perguntava se alguém sabia. Talvez em outras civilizações ou em outros mundos. Neste lugar de onde ele falava, não. A morte definitivamente não era algo tranquilo. Tentou buscar algum eufemismo, um pensamento religioso. A mãe com certeza iria para um lugar melhor, ou se encontrariam mais tarde, no céu, no inferno, em outras encarnações...

– Não!

Saiu correndo desesperado e, ao cruzar a porta do hospital e colocar o pé na calçada, lembrou da Esperança. A Esperança verde, aquela, do poeta das coisas simples, a ES-PE-RAN-ÇA. Era dezembro. O último mês do ano sempre anuncia um tempo de fechar ciclos para iniciar outros, quiçá melhores, ou ainda que não o fossem, era certo que o tempo não é algo a ser questionado, apenas vivido.

Olhou para o céu. Um dia azulado e de sol. O verão lhe lembrava o temperamento impulsivo e caloroso da mãe. Foi aí que decidiu. Olhou para os canos e as condições da parede e pensou: veria a mãe pela última vez.

Ninguém notou, mas quando menos esperavam ele estava lá, na janela do quarto. O vidro amplo, apesar de o leito um pouco distante e eram tantos aparatos que não conseguia mais enxergar a mulher que um dia fora a sua mãe. E também não se enxergava mais sem ela.

Percebeu que mesmo sem a morte, sua mãe já não existia e nem mesmo ele. Então lembrou-se da poesia e, sem titubear, abriu os braços e enlaçou a mais verde Esperança que pôde alcançar.

Ele foi encontrado miraculosamente incólume na calçada. Não o seu corpo, mas tudo o que nele habitava.

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Arte: Valdir Gomez

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