
A viagem
Márcia Plana
Meio dia, as badaladas informam que metade da população brasileira, quando possível, almoça neste horário. Antes da mãe colocar o último caroço de feijão na boca, Marília mira os pais e anuncia:
– Tomei uma decisão ontem à noite. Vou viajar.
A mãe, ainda com o caroço entre os dentes, engasga. O pai dá uma batidinha nas costas da esposa. A filha corre até a pia e pega um copo d' água.
– Tudo bem, mãe?
– Você não vai não. É muito perigoso! Não percebe que coloca nossas vidas em risco? Além do mais, não poderá ocorrer voo. Os aeroportos podem fechar a qualquer momento. Passou no rádio que os aeroportos reduziram os voos em noventa e oito por cento.
– Não se preocupem, eu não vou de avião.
– De ônibus que não vai. Aquele ar condicionado... e se faltar? Que ar vai respirar? Você não entende que não é momento de viajar?
– Mãe, também não vou de ônibus, fica tranquila. Vou de carro.
O pai, que ainda não havia se pronunciado, soca a mesa com força e diz:
– De carro ninguém sai de casa!
O irmão assiste a cena do drama infinito.
– Não estão vendo que Marília já está decidida?
– Vocês brigaram? Eu mato os dois agora mesmo. – disse a mãe.
– Não brigamos, não, mãe. Mas... vou para Ouro Preto!
– É trabalho? Estudo? Tudo isto pode ser feito pelo computador: banco, compras... A senhorita que fique em casa como todo mundo, respeitando o protocolo. Não precisa colocar o pé na estrada. Não escutou os noticiários? Estas crianças têm cada ideia!
– Mãe, eu não sou criança. Eu preciso respirar um pouco, outros ares.
– Menina, venha aqui! Lembra quando você sofreu aquele acidente na Rodovia em Limeira. Eu tive que sair correndo da empresa para lhe socorrer. O carro fica!
– Tudo bem. Dou um jeito! Vou arrumar as malas.
– Menina teimosa, esta!
A mãe foi atrás da filha.
– Tem homem na parada.
– Ah! Pense o que quiser. Eu vou para Ouro Preto. Preciso me reencontrar. Fiquei muito tempo aqui em casa. Dá licença! Vou arrumar a mala.
A mãe sabe que não adianta falar, mas é mãe! Vocês sabem, as ladainhas são intermináveis! Marília pega a mala em cima do guarda roupa, cheia de pó. “Sei que dizem que não é o momento, mas existe a hora certa? – diz a menina em silêncio – Faz tanto tempo que quero fugir da correria diária e fazer do meu espaço minha corrida.”
– Tome este pano e passe álcool na mala. Sei que estamos em casa, mas a mala vai passear. Se não tem jeito, faça direito!
Marília pega o pano das mãos da mãe e passa no objeto, apagando o acúmulo de pó dos anos adormecidos pelo tempo não transcrito na página da vida, porque nem tudo se pauta, nem tudo é seguro. Vivemos exclusos da exposição de nossos sonhos.
Retira da cômoda um roupão de frio, um boné, chinelos. Vai até a escrivaninha, pega o "Romanceiro da Inconfidência" de Cecília Meireles, coloca na mala.
– Só vai levar isto, para onde você vai?
–Já disse, para Ouro Preto. Aproveita mãe, enquanto eu tomo banho, faz uns lanches para eu levar.
– Você não colocou nada na mala!
– Verdade! Falta álcool gel, garrafa de água, a lamparina e a barraca de camping.
– Você vai ficar numa barraca?
– Qual o problema? Não será a primeira vez!
Meia hora depois, Marília pega os lanches, coloca a máscara e se despede da família. Vê a lágrima correr no rosto da mãe.
– Volto daqui a três dias.
–A chave do carro não vai pegar? – pergunta a mãe.
– Melhor não. O pai não autorizou.
– Você vai como?
A menina não responde. Vai ao fundo do quintal, arma a barraca e começa a ler o livro.

Arte: Higor Lobo