
Ao lado
Valeria Aveiro
Já eram 22 horas quando a mãe prestimosa se dirigiu até o quarto para chamar a filha menor. A pizza caseira, feita com todo capricho, estava à mesa e iria esfriar. Todos os eventos fora de horário, a rotina da família alterada para momentos mais tardios, coisa que desagradava ao pai, ainda que agradasse aos demais. Ao adentrar o quarto, enorme foi a surpresa da mãe em ver que sua pequena dormia e, sob seu rosto suado, o lençol estava úmido de saliva. “E aquela reclamação de sempre ‘Mãe, estou cansada, vou para o quarto’. Que preguiça essa menina tem de fazer a lição!” E todas as lembranças ecoavam em sua cabeça quando colocou a mão na testa da filha e viu que queimava em febre.
Assombrada pela notícia do vírus ressoando em seu peito, saiu clamando por ajuda. O avô, o marido o filho mais velho e sua namorada, que já haviam iniciado a degustação do saboroso prato... Pena que neste momento tudo esfriou, a única coisa que ainda permanecia aquecida era a testa da pequena. Levá-la ao hospital era colocar toda a família em risco. O que fazer diante de tão inequívoca ameaça?
O anúncio veio único e certeiro:
– A Aninha está com FÉBBRRE!
O eco de sua mensagem pela casa:
“É o fim! Nunca pensei, depois de ter sobrevivido às batalhas como pracinha na segunda guerra, morreria assim, de bala invisível”; “A menina já vai ficar boa! Sei que vai, vou dar um chá de limão com alho, um banho frio e algumas gotas de Ibuprofeno. Pronto já vai ter passado!”; “Minha irmã, com Covid! O que eu faço? E a minha responsabilidade de estudante de medicina? Mas só estou no primeiro semestre e fui apenas duas semanas para a faculdade quando tudo começou! Mas e se fui eu que trouxe a morte da rua por ter ido buscar a Natália em casa? Antes não tivesse aprendido a dirigir...”; “Que malucos! A menina não tem nada! Está na cara que ficou doente porque só come porcaria, vai acabar ficando gorda! Agora os neuróticos dos pais, que já não saem para trabalhar há mais de um mês, vão ficar surtados! Parece que não enxergam a verdadeira preocupação do nosso país que é o problema econômico. Com tantos vagabundos, o país quebra!”
O filho levanta da mesa. O avô começa a tossir, a palpitação fica intensa. A namorada do rapaz auxilia o velho a chegar em seu quarto.
– Vai, descansa um pouco, vovô! E não alucina! Essa doença é coisa de comunista, não chega aqui não! É complô contra o presidente! Droga! Quebrei minha unha!
O mais velho, procura a carteirinha do convênio. Enquanto a mãe, já sem fôlego de tanto chorar, segura Aninha em seus braços.
– Estou bem, mamãe, estou bem. A garganta só dói um pouquinho...
“Meu coração despedaçado! Eu deveria ter sido mais rigorosa desde o início! É tal de saidinha para comprar sobremesa, o pão preferido do meu sogro, o remedinho para dor de cabeça. Fora essa garota insuportável que se diz namorada do meu filho. Um vaivém daqueles! E sem a menor responsabilidade! É uma dondoca mesmo!”
Chega o pai e retira Aninha do colo de sua mãe:
– Vem, meu bem, a mamãe está te assustando! Ela é maluca! “Maluca? MA-LU-CA?” A palavra ecoava na cabeça da mãe quando jogou o sapato de canto e saiu correndo atrás do marido que já lhe dera as costas há algum tempo, mas que, pelo torpor cotidiano, ela ainda não reagira.
– Maluca!? Dá essa menina aqui! Você não vai dar nenhum remédio a ela! Você é que é doido e um irresponsável! Não está vendo todos os dias nos jornais o que está acontecendo? Quem você pensa que é? Vai esperar o Artur ligar para o médico. Vamos resolver isso da maneira correta.
– Calma! Tenham calma, todos! Eu vou resolver isso. Pagamos plano de saúde caríssimo, tem que servir para alguma coisa!
Chama, chama, chama...
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– Fica Aninha, fica com o papai, não escuta o que a mamãe está falando não, vou te dar o remedinho.
– Arthur, me leva embora agora! Eu não quero ficar aqui, nesse hospício! O que eu vou falar para papai? Ele é um homem super ocupado, amanhã cedo tem que ir para a empresa e vai me deixar no cabeleireiro antes! Eu tenho que dormir!
– Silêncio! Estou tentando ouvir a gravação! Não sei se perceberam, mas estou ligando, já tentei vários números e dá errado!
A mãe, antes de cometer uma loucura de verdade, soltou a menina nos braços do pai e saiu em direção ao telefone. A gratidão era enorme! Aquele menino sim! Tinha juízo e estudava incansavelmente! Teria um ótimo futuro, pena não se livrar daquela insuportável da Natália!
– Dá aqui o telefone, meu filho. Deixa que eu continue tentando! Vai ver como está o seu avô.
– Não estão ouvindo, não? Eu quero ir embora. Minha pele já está ficando afetada! Como vou fazer as fotos para o painel da minha festa de sábado?
– Chega! – gritou a mãe – Não vou autorizar que você vá embora, será que não entendeu? Se a Aninha estiver com Covid-19, estamos todos em QUA-REN-TE-NA! O que você tem na sua cabeça, garota, somente cabelo com luzes?
– Calma mãe! Eu resolvo isso! Vem aqui, Natália.
O casal se dirigiu à área e a conversa corria, enquanto a mãe finalmente conseguiu contato. A enfermeira orientou os primeiros socorros, a videochamada seria agendada e, logo mais, o médico daria um retorno.
O avô, sozinho no quarto, refletia sobre tudo o que vivera até o momento. Fora um casamento lindo, de 56 anos, quando sua esposa o deixou. Agora tinha que morar com o desmiolado do filho e, ainda por cima, essa doença em um país de insanos! Quanto tempo mais poderia viver diante daquela situação? Era mesmo o fim dos tempos! Pelo menos, de seu tempo.
Três dias depois, a febre já havia passado. O médico, que ligara de madrugada, orientou a mãe a ter as devidas precauções e manter a família em isolamento, mas tratou com Amoxilina a provável dor de garganta, que foi logo embora.
–Vem brincar com o papai, Aninha. Prometo que, hoje, te compro um presente novo.
– Está vendo? A menina não tinha nada. Só maluquice da sua mãe, mesmo, e falta de educação da criança, que se alimenta super mal. Ah, nossos filhos não vão passar por isso, né amor? Espera aí, tenho que desligar porque a sessão de fotos vai começar. Beijo!
Quando Arthur desligou o celular, ouviu gritos desesperados! Pareciam vir da casa ao lado. A mãe saiu correndo do quarto, aflita. Ao abrir a janela, escutou as pessoas reunidas em frente à casa do vizinho, comentarem alarmadas:
– Ei, o que está acontecendo ali?
– O vizinho acabou de morrer. Covid-19!
Enquanto isso, o pai colocava Aninha em sua caminha cor de rosa e suspirava:
– Que alívio!

Arte: Viviane Bezerra