
Tecla solta
Márcia Plana
, faço questão de iniciar assim, e dizer bom dia como de costume. Toca o telefone, mas já estou de saída, a insistência dos gritos sinalizadores é tanta, vão acordar os vizinhos, até parece que alguém morreu. Dou meia volta. Do outro lado da linha alguém me informa - não saia de casa. Um telefone sem fio rodeia o mundo inteiro com a mesma mensagem.
covid-19
coronavírus
carona vírus
coroa viu
psiu casa
casa
ninguém responde
Entre muitos emaranhados “ficar em casa” é o que mais parece certo nesta ocasião. O mundo inteiro. Não! Mas parte da população. Quer saber de uma coisa? Eu não entendo nada de cálculo, porque as equações como diz um amigo meu do Rio de Janeiro, nunca se fecham, entretanto, deixam brechas. É aí que mora o perigo! Estou em férias, pelo menos é o que me disseram. Eu não programei nada, assim como os demais trabalhadores que tiraram férias neste mês de abril. Tudo está fechado. Este mês não pude esconder meus fios brancos, meu primo teve que deixar o cabelo cair ao ombro, porque os salões estavam fechados. A roupa do aniversário da Suzana que vi na vitrine o mês passado, ficou no passado. Assim como o salário dos trabalhadores autônomos. O poema, senhores está fechado e não há vagas, nem para o gás, nem para o feijão. Ouvi isto em algum lugar...
Mas,
para que servem as palavras numa hora destas?
O mundo parou ou está doente? É a greve geral? A terceira guerra mundial invadiu o planeta Terra? Eu já não sei o que pensar. Às vezes é melhor nem pensar, nem ver... Mas, ficar cego: está é a melhor solução?
Vou tomar um copo de água. Só um gole para ouvir a enxurrada de fatos ou fakes nos burburinhos das redes sociais. As notícias deslizam como a ninhada de ratos que crescem em cima dos telhados das casas. Os encanamentos se preparam para o momento da explosão. O mundo vai acabar! Está nas escrituras. Muitos fazem seus discursos e, na curva, todos acham que sabem a causa. Sinceramente, eu estou perdida num labirinto, cega como a mulher dos óculos escuros, ou a mulher do médico, que via o que ninguém vê. Quando as pessoas veem, arrasta-lhes uma cegueira que encobre a visão.
Covid-19 é um vírus esperto, rouba-nos o ar, silenciosamente, e afasta as nossas epidermes. Respirar se faz necessário. E quanto a ver? A morte vem de fininho pelos múltiplos vírus, entre respirar e ver, sentir e ser. Eu já não sei, o termômetro do bem e do mal. Este não mede o estado de ser?
bem me quer
mal me quer
bem me quer
mal me quer
Parece brincadeira, mas é muito sério, precisamos ficar em casa. Todavia as brincadeiras de crianças são as coisas mais sérias da vida. Pulei corda e me escondi a vida inteira. Agora estamos escondidos em nossos lares, sei que é necessário. Não questiono isto. O duro é a companhia dos fantasmas, seus assombros diários, acompanhados por sons macabros da invisibilidade dos seres. Sei que acham que estou enlouquecendo. Porém, o que é a loucura, se não a própria vida dentro da casa verde? Imatura ou envelhecida demais?
Com o telefone às mãos, estou em férias. As aglomerações nas ruas me assustam, vejo pela TV. Perdão pela minha ignorância, nem todo mundo tem onde se esconder.
se correr o bicho pega
se ficar o bicho come
O que fazer? Fingir que nada disso está acontecendo e assistir um bom filme de Hollywood? Bebo outro gole de água, mas não refresca os meus pensamentos, sei que estou em férias.
bem me quer
mal me quer
bem me quer
É nome de flor? Um jogo? É assim que me sinto: despetalada, nua da carne, um caule, respirando minhas entranhas. Se estou em férias, por que trabalho como uma condenada?
são traços do passado
Para que rever tudo isto agora? Milhares de milhares de trabalhadores em casa, nas prisões de seus lares. A alegria registra os filhos correndo ao pé da mesa, os jogos de palitos, a leitura de Alice no País das Maravilhas, o dominó dançando... Entretanto, tudo corta quando no rádio, entre a miopia que come meu nome, os endereços são outros, descaminhados a muitos lugares ou a lugar nenhum, falo com o mundo, mas quem me escuta? Agora me sinto sem voz, as pancadarias nas panelas me despertam. Sei que preciso ficar em casa. É a melhor a coisa a fazer.
A bomba vai explodir a qualquer momento, são torpedos, misseis. Contudo, nem todo mundo pode ficar em casa
lixeiros enfermeiros
motoristas
agricultores
médicos
farmacêuticos padeiro
Esses saem dos seus lares para manter outros em casa. Mas não nos enganemos! Nada parou! O espaço modelou-se em um não lugar. Todo mundo que está em casa, nas minhas contas, trabalha o dobro. O que vale a minha matemática, se não olharam as expressões algébricas de Fabiano em Vidas Secas?
Recebo um telefonema daqui e outro dali. Difícil ser o namorado, o irmão, o pai, a mãe, seja lá quem for. Estamos na mesma situação, quase todos em casa e trabalhando.
descansar é piada
A população brasileira trabalha incansavelmente todos os dias, mesmo que Macunaíma diga dez mil vezes “Ai! que preguiça”. Este povo não para nunca. Há quem nos chame de vagabundos.
Enquanto tomo um gole de água, lanço minha última tecla, sem ponto final, porque sei que a vida continua

Arte: Vitória Alencar