
Entre fios
Valdemir Carmo
Estava encolhida no sofá de tecido macio. Sempre olhava aquela cor e lembrava como havia brigado com Jorge, porque ele não queria um sofá azul. Mas eram só lembranças. No momento estava em prantos. Há duas semanas brigava com o marido.
Ambos estavam com a alma despedaçada, pois perderam sua “filhinha” de 16 anos. Sempre a chamara de filhinha e, ao pensar nos seus pés sujos no azul do sofá, dá um sorriso por dentro. Lembra-se que brigava sempre com a filhinha por isso. E hoje lhe parece um motivo tão tolo.
Desde a morte da menina ela sente que nem existe. Nada lhe interessa, nada faz sentido, nada é bom. A perda devastou aquela mulher. Ela chora por horas. Após muito sofrer, ela ouve a porta se abrir.
É Jorge.
Ele tira a máscara obrigatória e ela pensa em como esse pedaço de pano é inútil. “Não salvou minha mocinha”. Pensou suspirando com mais dor. Está sem paciência, grita de um sofrimento que é cortante, é azedo, é cinza, é fumegante como uma cidade que acabara de ser bombardeada. Olham-se e, cada um, guarda mais o seu sofrer. E como campos magnéticos semelhantes, se repelem.
Aquele luto destruiu todos os sentimentos bons e os dois gritam e gritam e se desentendem no instante do olhar. Um não pode ajudar o outro. Se culpam, se repulsam, se acusam.
Cada um tem uma dor que ocupa mais, muito mais do que aquele apartamento e eles não cabem ali. Choro, ar, dor, ardor, suspiro. Choro, desconsolo, solidão. Choro, culpa.
Não há violência física, mas, no momento, não se suportam.
Jorge recoloca a máscara contra a Covid.
Sai resoluto e firme, conquanto arrasado e destruído. Ela volta ao canto azul de seu sofá e chora até dormir. Não sonha, dorme pesado e acorda com o peso do viver.
Senta no chão e põe o rosto no assento do sofá. Sente seu próprio calor vindo do tecido e pensa em como um vírus pode ter destruído tanto.

Arte: Chico Pereira