
Cores sem sabores
Márcia Plana
Fábio afia a faca, uma faca só lâmina, afia com afinco para desfiar a carne ao fio deste ano.
Sozinho em casa, Fábio estava para enlouquecer, no bolso apenas os trocados da rescisão. Andar pelos cômodos da casa, como um atleta para queimar as calorias, não poderia, os vizinhos queixar-se-iam ao síndico e seria expulso do apartamento mais que depressa. Lamentava em silêncio o aluguel atrasado, as contas que jamais conseguiria pagar naquele momento. Caminhar na praça estava fora de cogitação.
Foi aí que depois de cinco passos contados do quarto descobriu a cozinha: mesa, pia e fogão. Adiante, um armário com três gavetas: na primeira estavam os panos de prato; na segunda – desejava que não existisse – guardava as contas; na terceira, já não se lembrava. Abriu por abrir, encontrou um álbum de figurinhas bem antigo, algumas folhas soltas com anotações esquecidas e o caderno de receita da avó: vatapá, baião de dois, bolo de fubá, cuscuz, pão de ló... Sentiu o sabor do passado na letra miúda, desajeitada e carcomida pelo tempo. Espiou o ontem, recuperou a sanidade e a alegria de viver.
Em seguida, abriu as portas do armário, com o caderno à mão. Tomou nota do que faltava na dispensa. Pensou na avó, mulher forte, robusta e com sorriso nos lábios. Não poderia mais esperar, desceu correndo as escadas para ir ao mercado, enfiou a mão no bolso, com o pouco que tinha, traria apenas no necessário. Foi quando escutou um zum-zum-zum. Era D. Zulu, moradora do apartamento contiguo. Mulher autêntica como a avó. Ninguém fazia uma feijoada ou um peixe com batata como elas! Sua avó, infelizmente, já não estava entre eles desde o último Natal. D. Zulu resistiu às falações e aos mexericos da vizinhança. No entanto, tinha contraído a Covid.
Não se sabe como apanhou a tal doença. A princípio, alguns moradores tiveram receio de sua presença no prédio. Os médicos disseram que o tratamento era domiciliar. Ela não ficaria no hospital, apesar de estar infectada, porém precisava manter-se isolada. O bom de morar em apartamento é não ver ninguém. As portas vivem fechadas. Como deixar um ser sozinho e doente?
Existe uma diferença entre distanciamento e isolamento. Distanciar significa ficar longe; interfere, inclusive, na cultura – sem beijos, sem abraços, nem apertos de mão, andar com uma fita métrica e medir um metro e meio de pessoa a pessoa. D. Zulu, com certeza, sabe que isto não é possível para a grande parcela da população – ônibus, trens, bancos, feiras, mercados...
Opa! Fábio vai ao mercado... o caderno de receita e as anotações... D. Zulu agora em isolamento. Teria que viver só. Mas ela já morava sozinha! A diferença é que não poderia sair para fazer a caminhada diária, nem admirar as flores do jardim do prédio ou ir à feira na hora da xepa. Muito menos receber visitas, seja lá de quem fosse. Fábio ficou com D. Zulu na cabeça. Baiana arretada, a casa mesmo trancafiada perfumava o corredor com cândida.
Quando retornou do mercado nas sacolas apenas algumas frutas e verduras, vasinhos e sementes, o caderno de receita ainda estava à mão. Olhou para a porta da mulher. Nenhum ruído. Pensou no caldo de abóbora. Subiu dois lances de escada para chegar ao apartamento. Tirou os sapatos e as roupas, tomou banho e em seguida banhou as mercadorias. Trabalho que durou o dia inteiro, em embalagem por embalagem. Apartou alguns produtos na lavandeira. Estes passariam isolados, assim como estava D. Zulu, sem ver ninguém.
D. Zulu deveria sentir dor, mas não havia alguém para lastimá-la. O rapaz tentou ligar, mas a mulher não lhe respondeu de imediato. Será que vírus atravessa linha telefônica? A mensagem pelo whatsapp foi respondida depois de três horas. “Estou cansada com o corpo dolorido”, mas nada de novo. A não ser as invenções do Fábio. Este pelejou para construir uma pequena horta caseira em vasos. Cultivaria, salsinha, coentro, pimenta, hortelã entre outras especiarias, registradas no caderno de receita. Todavia as paredes do prédio não colaboravam com o resultado. Era sombra e sombra. A casa fria. Nesta situação, as plantações não foram avante, precisavam de persistência, água fresca, boas conversas, sol e ar, mesmo que contraído da janela à parede da vizinha.
A comida trouxe cores e sabores à mesa: batata, pimentão, beterraba, mandioquinha, cenoura, couve, alface... da terra às mãos de Fábio. Este sabia, tal qual Ferreira Gullar, que os grãos antes de chegarem à mesa, passam pelo ventre da terra e o cultivo de milhares de trabalhadores. Agrotóxico é um crime para as plantações e demais vidas. A reforma agrária é aqui no chão, na mesa do trabalhador. Ora, ora, quantos estão desempregados? Quantos tratados como gado? A Covid tirou o pão da boca de milhares de pessoas ou milhares de pessoas já não tinham pão? A Covid apontou e alastrou a ferida de milhares de pessoas? Quantas não sentiram o cheiro da receita da avó? A máscara desmascarou o mascaramento das mortes de milhares de brasileiros?
Fábio, pensava em D. Zulu, o murmurejo dos vizinhos incomodava-o. A natureza morta: a cesta quer cheia, quer vazia; o quadro na parede; a comida e a fome; D. Zulu e as dores. Ora febre, ora tosse, ora cansaço. Quem sabe o olfato e o paladar teriam ficado para trás? Fábio acionou o celular centenas de vezes.
Como resposta: silêncio!
Fábio cozinhou ao som dos Titãs – “Comida”. Do que será que D. Zulu tinha fome? Tinha sede? Qual a saída? Que parte caberia deste latifúndio? O chão agora era um espaço singular, atraente e sagrado, em que, com gana e dificuldade, D. Zulu comia a esperança de uma melhora de si e do mundo.
No chão, o prato de comida quente e fresco.

Arte: Hadson Ferreira de Jesus