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Feridas abertas

Marcos Moreira

A menina brinca com a boneca – brinquedo descartado pela filha da ex-patroa de sua mãe. O quintal é a viela em que se localiza o barraco onde moram. Uma artéria, que junto a outras, liga-se ao organismo pulsante que é a comunidade do Jardim Oratório, Mauá. De lá – em meio a barracos de madeirite, casas de tijolo baiano, sem reboque, penduradas no alto da ribanceira – vê-se a avenida marginal, o shopping reaberto, o centro, o terminal de ônibus, a linha do trem. Outra realidade, tão próxima e ao mesmo tempo tão distante...

Quarentena ou não, a cidade continua alheia à favela, às suas mazelas, à sua miséria. E quantos daqueles meninos e meninas de pés descalços, de pipa no ar, de lojinha na quebrada, do Funk, do RAP, descem ao centro para pedir esmola na bilheteria do terminal de ônibus, salivam ao ver a classe média se banqueteando na praça de alimentação do shopping, enquanto são perseguidos por seguranças, incomodam os alienados ao exporem-se como feridas abertas de uma sociedade desigual e desinteressada!

Mas a menina, que brinca e sonha, também alheia a sua própria realidade, vê na boneca Barbie, branca e loira, um reflexo não de si, mas do mundo que não é seu, da realidade vivida não por ela, não ali. E no seu devaneio infantil, ela pode ser o que quiser, ela pode ter e viver o que quiser! E como não vê em sua própria fisionomia de menina negra, com cabelo crespo, desgrenhado, a possibilidade de outra vida que não a que vive, ela se imagina, ela se projeta em alguém diferente de si. Em alguém diferente da mãe.

Afinal, embora a mãe nos tempos de escola chamasse atenção por seu belo sorriso, por seu corpo definido, sua pele bronzeada e seu cabelo cacheado de princesinha da periferia, deixou o tempo levar a beleza, a vaidade, o amor próprio e desleixou-se de si, entregou-se a rotina de viver em função de sobreviver, em função de subsistir.

E agora, com o emprego perdido, com o auxílio negado, com mais tempo em casa junto ao marido bêbado e violento, o que lhe resta? Viver de favores, de roupa doada, de comida doada, do medo instalado? Como garantir à filha uma existência minimamente digna? Uma existência diferente da sua, de suas irmãs ou de sua mãe?

Já é tarde! Ela chama a filha para entrar. O filho, ela nem sabe por onde anda. Espera que esteja no campinho soltando pipa. Pior seria se estivesse em outra viela por ali, fumando, cheirando, vendendo droga. 

Vai esquentar água para banhar a filha. Álcool em gel não há. Nem sabonete. No máximo um sabão em pedra feito com resto de banha de porco. A Covid proliferando-se entre os barracos, a UPA lotada e ela rezando para que ninguém ali pegue.

Logo chega o marido. Bêbado. Desempregado e bêbado. Agora, com todos em casa, os filhos sem escola, sem merenda, a comida diminuiu, mas não o destrato. Não a violência física e verbal. A princesinha da periferia, sucesso na escola e no Baile Funk, virou gata borralheira; o namorado, príncipe do crime e do tráfico, tornou-se sapo, bêbado, nóia, viciado em ser inútil, em ser incômodo, em ser cruel.

Quer saber o que tem para comer. Tem dinheiro para beber, fumar, cheirar, mas não para trazer comida para casa. Ainda assim, exige. Exige comida no prato, exige carne, se mal há arroz e feijão! Exige obediência cega. Exige subserviência. Exige o corpo da esposa, sem amor, sem carinho, ali, próximo aos olhos da filha. E com a recusa, exige o sangue dela em suas mãos.

Quarentena, maridos mais tempo em casa. Mulheres mais tempo convivendo com eles. Aumento da violência doméstica, dizem os números. E ela engrossaria as estatísticas se seu martírio fosse computado, se o marido fosse denunciado, se alguém se importasse...

Mas, minto. Alguém se importa. Alguém que foge todo dia de casa para não ver a mãe ser reduzida, para não ver o pai ser monstruoso. Que se perde no mundo, exposto à Covid, crime, drogas, para tentar se livrar da tortura de viver a própria vida.

O filho.

Ele chega bem na hora da briga. O corpo gigante do pai sobreposto ao frágil corpo da mãe. As mãos monstruosas do pai desferindo golpes no rosto da mãe, já roxo de constantes agressões. As mãos erguidas da mãe, tentando parcamente se proteger. A irmã chorando, desesperada, os bracinhos curtos agarrando a boneca como quem agarra a esperança que sequer sabe que existe. Na confusão, ninguém o viu abrir a porta. Ele não aguenta mais! Não aguenta mais os berros, não aguenta mais o choro, não aguenta mais o pai. Abaixa, apanha em sua mão a pedra redonda e lisa, usada para segurar a porta.

Desfere o golpe.

O sangue escorre, o corpo cai. E naquele instante, o filho agiganta-se e, desprovido de qualquer inocência que por ventura ainda lhe restasse, o menino torna-se homem.

A mãe, ainda no chão, fita o filho em pé, a pedra em riste, encarando o corpo inerte do pai. Ela se deixou subjugar pelo marido. E agora vê o filho, que deveria estar preocupado em estudar e se divertir, tendo de lidar com o peso de confrontar o pai e defendê-la. Isso não está certo.

Resoluta em assumir o controle, ela se levanta e afaga rosto do rapaz. Recolhe rapidamente as roupas numa trouxa feita de um lençol puído e sai na frente puxando os filhos pela mão entre vielas, becos e chão de terra batida, pulsando nas artérias daquele organismo vivo, ignorado pela sociedade.

Ela não sabe para onde vão, nem se o marido sobreviveu ao golpe. Não sabe nada sobre pandemia, máscaras, álcool em gel, isolamento, reabertura da economia, ou seja lá o que for. Só sabe de uma coisa: sua filha, enfim, verá na mãe uma mulher em quem se espelhar.

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Arte: Maria Luíza Meneses

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