
Doutor Carlos
Valdemir Carmo
Meu nome é Carlos. Sou médico e consegui meu diploma com muito esforço. Sempre fui de uma família de poucas posses. Minha mãe vendeu toalhas de crochê para ajudar a pagar meus livros. Lembro-me que, em minha formatura, meu pai chorou muito. Era o seu orgulho particular e raro: filho médico.
No entanto, tudo isto se perde nas batalhas do dia a dia, já que trabalho num hospital público da capital de um dos países mais atrasados do mundo. Vejo coisas horríveis o tempo todo e meu desafio é não prejudicar minha saúde física e mental. Observem como foi minha última semana:
Segunda feira, dia 17
Estou dormindo no plantão do hospital. Não posso ir para casa há uns quinze dias, pois há o risco de estar infectado e poderia alastrar a doença. Sou acordado, abrupta e estrionicamente, porque chegaram três pessoas com problemas respiratórios, muita febre e tosse acentuada. Os três vão para o atendimento de emergência. Uma hora e quinze depois chegam mais quatro e, como os outros médicos já estão muito ocupados, devo escolher a quem socorro primeiro e quem espera para poder ser atendido. Novamente, muita tosse, muita febre e escassa respiração. Faço então um estranho revezamento tentando salvar a todos.
Terça-feira, dia 18
Vinte e duas horas depois, chegam mais seis e já não sei como ajudar. Três dos que estão sendo atendidos com ácido acetil salicílico pioram e tenho que sedá-los. Estão ficando azuis por conta da hipóxia. Assim, enquanto as enfermeiras lutam para atendê-los da melhor forma, tenho que mandar vários para casa. Recomendo boa alimentação, limão e rigoroso isolamento, além de limpar a casa com desinfetante, roupas de cama limpas e sempre trocadas. Poucas destas recomendações serão seguidas. Chegam mais onze precisando de meus cuidados, enquanto morrem afogados no seco. E pensar que, há meses, as autoridades disseram que era só uma gripezinha.
Quarta-feira, dia 19
Escrevo uma mensagem para casa, digo sobre minhas saudades, mas não posso falar sobre minha trágica rotina. Informam-me que o limão e outros produtos, que podem ajudar na recuperação do mal, tiveram os preços absurdamente aumentados. A propósito, nesta tarde, tenho de socorrer mais quatro. Acabaram-se as formas com as quais posso salvá-los. Falo com o diretor do hospital sobre a falta de salicilatos, de máscaras e até de macas. Ele me explica que, embora a Ministério da Saúde tenha gastado seis milhões com estes produtos, o carregamento sumiu. Seis milhões? – pergunto-me – Dava para comprar outro hospital! E o pior, a fortuna sumiu e o material que deveria salvar vidas também.
Quinta-feira, dia 20
Acordo com o barulho da briga. Um rapaz estava muito bravo com os atendentes pois, devido a motivos burocráticos, não se podia salvar seu pai, que já estava muito mal. Dou-lhe assistência e me responsabilizo pelo paciente. Neste ínterim, chegam mais oito, e chegam mais dez, e chegam mais quatro. Quase todos com muita febre e sem respirar. Novamente, tem-se que eleger quem precisa ser atendido primeiro e quem espera para ter assistência. Já se fala em um número elevado de mortos, os quais a prefeitura tem que buscar em casa, após o falecimento. Centenas morrendo sem socorro em seus próprios quartos. Estou cansado, irritado e sinto falta de minha família.
Sexta-feira, dia 21
Três enfermeiras pegam a doença. Estou com febre e talvez tenha me contagiado. Recordo-me de Rodrigues Alves que morreu no mês passado. Ele dizia, há oito meses, que esta doença era invenção de mentirosos... Ironia trágica! Se um homem de suas posses morreu sem um socorro adequado, o que posso fazer pelo povo? De novo vou ao diretor do hospital e ele repete a explicação do dia anterior. Reclamei da falta de máscara e outros materiais básicos para primeiros socorros e a resposta: "O dinheiro foi gasto e os produtos ainda não vieram". Mais pacientes morrem e nem fiquei sabendo quantos. Estou cada vez mais angustiado.
Sábado, dia 22
Minha febre baixou. Acho que estou a salvo da doença. Era só muito cansaço. . . São duas da tarde. Não vou pra casa faz muito tempo. Vou dar uma volta lá fora e tomar ar puro. Agradável brisa marinha. Como valorizo isso agora. Perto da entrada, me recosto e fico pensando em minha vida e em quantas vidas não pude salvar... Súbito, num lance insolitíssimo, volto de meus pensamentos, pois um grupo investe contra mim. Jogam-me pedras e me acusam de estar inventando os números da doença. Números que sempre eram publicados no “Jornal do Brasil”. Corro de volta. Tento trabalhar o restante do dia e, no começo da noite, peço demissão. Limpo-me todo com água morna e sabão e, como cidadão comum que agora sou, volto para minha casa. Vou largar a medicina.
(Relato do Dr. Carlos Sanches durante a pandemia de gripe espanhola no Rio de Janeiro – fevereiro de 1919).
Algumas coisas são imutáveis por aqui.
*Rodrigues Alves era o presidente eleito do Brasil em 1918. Faleceu em janeiro de 1919 da Gripe Espanhola.

Arte: Mireille Lerner