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O sol

Valéria Aveiro

Preciso do sol. Acordo mais uma vez, já é o quinquagésimo segundo dia em que devo ficar em casa. As paredes do meu quarto já não me dizem nada, mas quando abro a janela ele está lá, despontando no horizonte, trazendo toda a esperança que preciso ter em meio ao turbilhão. Nove de maio é outono, dizem que é certo que as folhas caiam. O outono é uma estação intermediária: está entre o verão e o inverno, sendo assim, pode ser considerado um período de transição... A característica basilar do outono é a progressiva redução da luz solar diária. É certo que, por esse motivo, daqui em diante, verei cada vez menos o astro capaz de imprimir algum sentido ao meu dia.

Enquanto vejo luz, já posso me levantar, sacudir a preguiça e ressignificar os momentos. Ao abrir os olhos, todas as manhãs, levo alguns minutos para lembrar-me de coisas que jamais deveria ter vivido e, quando elas insistem em voltar à minha intermitente memória, é o brilho do dia que, como um motor potente, gera a energia necessária para me retirar do ostracismo, convertendo energia em movimento. A mecânica necessária para fazer o braço se erguer, o lábio se entreabrir, os pés promoverem os passos, ainda que não tão largos quanto se gostaria.

Sem o sol não se lava a roupa, visto que não irá secar, e não se abrem as portas nem as janelas, pois já é inútil, o frio tomará conta. Como se varre a casa? Por que se arrastar os móveis e revirar as gavetas se a umidade toma conta e não será possível passar o pano, livrar-se do lixo, aquecer os cobertores e as toalhas, para que fiquem cheirosos e livres dos fungos, revirar os armários para retirar possíveis manchas de mofo que nos impedem de mudar e ser, quiçá, melhores?

Manifestação da divindade para os povos, o sol nasce, cotidianamente, mas também se põe e de modo não menos belo. Sua ida promove o surgimento da lua, a dualidade macho-fêmea. O turbilhão de fogo precisa se aplacar para que venha a poesia. A dor tem que aparecer para que o homem se transforme. É a dinâmica cósmica. O sol, em seu infinito brilho, irradia tanta luz que ofusca, tanto calor que queima. Dele não é possível se aproximar e ficar sob sua incidência por horas e sem proteção. É o nosso fim! É preciso que ele se vá para reconhecermos a eterna possibilidade de renascer.

Não. Não é à luz reflexa da lua que me oponho, posto que representa a noite. Entretanto, os dias sem sol me fazem temer que já não haja mais como continuar após a queda da última pétala, após o ocaso, após a partida que o vírus insiste em causar, ainda que nunca o tenhamos visto. O sol me prometeu que amanhã tudo poderá continuar, aqui ou em lugares desconhecidos.

Aquilo que eu não sei, a sombra que em mim habita, a ira do homem, o caos, a morte, o fim - tudo está no horizonte. Estamos no outono... O inverno se anuncia rigoroso. A quarentena se fará de cem, talvez quinhentos, ou mil dias...

Só preciso ter certeza de que a energia flui, em um sentido unidirecional, entrando no ecossistema a partir da luz vibrante. Na fotossíntese, a planta transforma a energia solar em química. A planta respira, assim como o meu pulmão. Cada qual se doa, conforme seu nível trófico na cadeia alimentar, para que a essência sobreviva, ainda que a forma se dilua em outras tantas formas quantas nem se possa supor.

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Arte: Vitor Rebello

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