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O matador

Valdemir Carmo

"E tudo foi bem assim, porque tinha de ser, já que assim foi"

A hora e a vez de Augusto Matraga

 

Tem certos causos que fazem admirar até o finado Mané Solano, que ficou sem falar por doze anos. Esta é uma destas histórias. Não repare no insólito deste acontecido, de que até hoje me alembro e sorrio por dentro, só de alembrar. Sou do interiorzão de Minas e lá, nesta época, as cidades mais afastadas ainda tinham vaqueiros que nunca viram um carro e muita gente que nascia e nem era registrada. Era lugar de assombração e saci. Mas não é o que vou contar.

Certa feita, eu era recém-formado enfermeiro e estava de serviço numa destas cidadezinhas perto das Serras de Minas. Estava sozinho no consultório, quase cochilando, vendo o tempo passar numa mesmice que parecia pra sempre. Foi que num zás de repentino ligeiro que ouvi o tropel. Já estava perto, tomei-me em susto e fui ter na janela para espiar. Agora, não mais sopitado e sim alerta... arrupeio na espinha, vi o perigo...

Eram três cavaleiros, mas o do meio era certamente o líder. Escanchado na sela, coldre baixo, ao alcance das mãos, armas brilhando ao sol. Cavalos grandes, alazões prontos para correr, preciso fosse. Homem troncudo, baixo, mas extremamente forte, olhar ruim de quem mata por um tiquim de queijo. Levantou os olhos e me olhou e me mostrou aquela truculência de presas, à guisa de sorriso. Os outros dois? Fortes também, mas numa relação de inferioridade ao do meio. Olhavam de esgueio, desconfiados, escaramiolados com o desconhecido. Cavalos igualmente grandes, inquietos e suados.

Concebi grande dúvida naquela questã e cabesmiditei que não era de bom tom parecer temeroso. Enchi o peito e eis que sai com cara de mau, cara contrita, cenho pra baixo e, como dizia meu pai: espírito zóio de cabrito. Pensei em pegar a arma, mas...pra quê? Se relasse nela o cavaleiro me enchia de chumbo num piscar.

Lá fora, o perigo que parecia grande, ficou maior... E se corresse? Não dava. Qualquer um deles podia me cercar com o cavalo e me pôr em descanso eterno. Arre!  Assim, parei na frente da soleira e o de lá me olhou com seu olhar de fúria. Uma jaguatirica pronta para o bote. Tentei olhar o meu olhar mais brabo e mais macho.

Apeou e pondo descanso na parede perto da janela, me disse com uma voz de gelar o sangue:

–  O senhor me adescurpe. Vim das Terras de Carmo do Rio para te preguntar uma questão. Se o senhor puder ter a bondade. Sou Narciso... dos Caxambus.

– Vixe Maria – pensei. Narciso Caxambu era afamado. O maior matador de Minas, talvez do Brasil. Pistoleiro brabo, briguento e azedo. Matou sua primeira vítima quando ainda tinha doze anos, por causa de burquinha. Hoje, tem mais de 50 mortes nas costas. O que faço? Tentei ouvi-lo sem tremer:

– Viajei desda manhazinha pra ouvir de tu uma explicação bem prosada... Lá dos interior de onde vim só se fala nesta tal peste que está matando mais gente que eu. – Esboçou um meio sorriso – Bom... esta doença chega até as bandas de onde moro?  Vai ser preciso usar mascra? 

Pelo modo arredio, Narciso precisava daquela resposta rapidamente. Eu tinha uma nesguinha de segundo para pensar numa resposta que não o deixasse nervoso. Mas o quengo não pensou na segurança e eu disse a verdade. Fiz que sim com a cabeça e fiz que sim com a boca. Tarde demais para arrepender. Mas expliquei:

– Esta doença passa de um para o outro pelo ar. O bichim pequinin entra pelos pulmão e ocê morre sem ar, esguelado, afogado no seco. Por isto, o governo e os médicos mandaram usar um lenço, um pano, ou uma mascra.

Com medo do que o homem fosse achar de minha resposta, olhei ele de frente, como se brabo fosse.  Se morrer fosse, iria como homem. Convidei a entrar. Ele fez que não e amontou de novo. Observou o terreno a sua volta, esperando uma arapuca. Viu que estava seguro e me disse com mais calma:

– Se é anssim, vou usar e os meus compadres também. No veriverbo do fato, já uso para tocar os boi nos descampado, já tenho costume. Agradecido, dotô – e saíram em disparada, poeira alta – Oh!Oh! Oh!.... EIA....

– Me chamou de Dotô... Assim, fiquei ali uns bons minutos escarameditando, espiando o perigo que passei. Contasse isso pra alguém, quem ia acreditar?  A peste, doença que já matou milhares pelo mundo, chegou a botar medo até em destemido matador. Sorri no canto da boca.   

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Arte: Gabrielly Rodrigues Lauriano

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