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Passos atrás

Valéria Aveiro

2020. É preciso dar alguns passos atrás, sair da própria perspectiva e observar o sistema como um todo. Ponderar infinitamente e aguardar o remédio. É necessário PARAR, ficar em casa, mas não em seu sentido domicílio ou código de endereçamento postal. É preciso entender o significado de lar e quem ainda cabe nele. Nesta acepção, os sentimentos fluem aos borbotões. Casa, em sentido de construção, é o que deve ser concebido, arquitetado, edificado a cada dia. E não é simples descobrir o que realmente vale a pena! É preciso fazer algo grande! Cercado pela morte o ser humano clama por compreender sua função na engrenagem da vida. Mas não sabe o que fazer, o tempo é pouco e o espaço limitado.

É urgente transformar! Trazer algo novo ao dia a dia. Já não é possível sentir o mesmo ódio, olhar as vitrines e comprar, esperar curtidas na rede social ou chupar sorvete no shopping.

Nesse contexto, não faz sentido nenhum ser gado, nem tampouco promover a revolução! Quem quer ser "verdeamarelo" e sentir nojo e desprezo por metade da humanidade? Quem quer ser "vermelho" e sentir nojo e desprezo pela outra metade? Destruir as cores do país, reduzindo-as a símbolos fascistas ou banhá-las de sangue? Nada disso!

O mundo parece ter bastante potencial de continuidade, ainda que as existências estejam aprisionadas e tudo o que se queria antes não pareça mais plausível. O ouro ainda reluz, a planta ainda cresce, os cães ladram, mas a caravana não para. É premente fazer poesia, mas há muita roupa para lavar; ler todos os livros da estante, mas a comida deve estar fresca à mesa, sem deliveries... Quantos filmes não foram e nunca serão assistidos porque é preciso limpar o chão e o trabalho remoto se multiplica a cada segundo? Hoje não.

Como se edifica o sonho se o imprescindível é fazer a cada minuto aquilo que esperam de nós? E isto é preciso? Qual seria a quimera? Não existe ilusão para quem não tem pão, não existe arte onde não há água e sabão, não existe quarentena que proteja a quem não tem casa para se exilar, nem aos cegos... Então dá vergonha do querer ser grande, as palavras fogem e as mãos começam a agir.

É aí que passa a ser imperativo trabalhar. Trabalhar daquele trabalho suor, que usa a mão, a voz, o braço, que desgasta o corpo! Trabalhar até não mais poder, nada que a medida das oito horas diárias preveja, não! Trabalhar desse trabalho que esgota, faz doer as costas e os ombros, pesa até te levar ao chão. Trabalhar ininterruptamente, como se fosse um vício que te fará esquecer que nada do que você pode construir terá sentido para a humanidade.

Então é hora de se levantar e varrer, esfregar, lustrar, dobrar, passar fazer com que o lar corresponda à organização e limpeza requisitadas por sua alma e seu coração. Costurar as máscaras. E o telefone toca, a mensagem chega, incessantemente! É preciso responder. Responder a tudo e a todos! Dar todas as respostas que não se tem. Computador e celular trabalham juntos para estabelecer a relação entre o homem e o mundo, como se já não houvesse solidão.

Diz a psicologia que é preciso dar alguns passos atrás, sair da própria perspectiva e observar o sistema como um todo. Ponderar infinitamente e aguardar o remédio. Melhor seria a vacina para não ter que remediar o sofrer.

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Arte: Camille Braz

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